Este livro é muito especial para mim (como dirão todas as autoras e todos os autores de cada um dos seus livros…) mas no meu caso vou tentar enumerar as razões para o considerar assim. Primeiro, cheguei a pensar que não iria conseguir acabá-lo, publicá-lo, dar sentido a todo o material que fui recolhendo sobre esta grande Deusa dupla tão central no nosso território, que representa ou incorpora esta divisão do ano em duas partes ainda hoje tão celebrada entre nós… De forma que vê-lo aqui manifestado na forma física é uma alegria e um alívio muito grande… Segundo, havia esta personagem divina que é IRIA, que do ponto de vista histórico, ou lendário, melhor dizendo, é apenas uma jovem freira, uma noviça, que viveu apenas até aos 15 anos. Apesar desse curtíssimo tempo de vida, o património que nos legou, é composto por confrarias, ermidas, capelas, igrejas, santuários, padrões, estandartes, cisternas, feiras, aquedutos, lendas, romances, poemas, orações, milagres, um milagre testemunhado por outra Santa, inclusive, Isabel de Aragão, consorte do rei Dinis, que segundo reza a lenda foi outra das testemunhas; etc. Este património é imenso e estende-se praticamente por todo o território… Iria é demasiado grande para não A vermos, demasiado importante para não A considerarmos quando se busca pela Senhora do território. Dá para perceber que Ela é, só pode ser, central. Mas como, se na sua Cova Ela apenas aparece durante os seis meses do bom tempo, de Maio a Outubro?!... Ah… isso é o que vamos ver neste livro…
E mais, Ela continua a ocupar um lugar central na nossa religiosidade popular, mesmo agora, porque o verdadeiro topónimo do sítio onde o culto da Deusa está mais vivo entre nós é COVA DA IRIA. Portanto, na serra de Aire, uma inversão do Seu nome, cultua-se até hoje IRIA, o que nos pode levar a defender a ideia de ser Ela uma das grandes Deusas, não apenas do território português, como também do mundo inteiro... É muito. É uma herança espiritual que precisamos de avaliar, de reconhecer, de estimar e de preservar e defender (vejam o destino do Seu antigo convento que será transformado em mais uma unidade hoteleira). E não é uma herança morta, digamos, inerte, apesar de tudo. Mesmo se excluirmos a Cova da Iria, quem como eu tomou o hábito de ir em peregrinação a Tomar a cada dia 20 de Outubro, consegue sentir o lugar que Ela ocupa nos corações das mulheres e dos homens dessa cidade, que vão religiosamente lançar-lhe pétalas de rosas no Nabão, que segundo a lenda levou o seu corpo morto até à Ribeira de Santarém…
Então, este livro é também um repositório de tudo aquilo que eu encontrei, de tudo o que eu sei sobre Ela. Para não esquecermos. Eu vivi em Inglaterra, em Glastonbury, e sei como ali se preserva, se acarinha, se tem orgulho, se contam histórias, se cria arte, se expande a cultura, se constrói toda uma aura mítica e mística à volta desses lugares sagrados, que depois irradia para o mundo e enriquece a nossa cultura humana, acrescenta à nossa humanidade, acrescenta à Alma ao mundo… E sabemos como isso é crucial nestes tempos em que as AIs, a robotização, a transformação dos seres humanos em ciborgues, fundindo-se com a máquina, são ameaças reais à nossa humanidade, à nossa alma… E a par destas, existe outra razão crucial que justifica este livro: dar a minha contribuição para sermos nós, mulheres, a contar as nossas histórias, a dominar a narrativa que nos diz respeito, assumindo-nos como sujeitos da cultura e não apenas objecto, com voz própria e discernimento próprio, baseado no nosso sentir de mulheres, na nossa história de mulheres, na nossa experiência de mulheres que geram a humanidade, que a criam; mulheres que vertem o sangue da vida, o sangue menstrual, tornado tabu, e que vertem o sangue da morte todos os dias a cada instante neste planeta… No nosso país uma média anual de 40 mulheres morre porque sim às mãos daqueles que um dia lhes juraram amor… eterno, possivelmente…
A Iria lendária, que seria uma das sacerdotisas de Iria, Deusa, foi uma dessas mulheres. Sim, eu sei que Ela é apenas mais uma das muitas raparigas que se tornaram santas depois de terem sido assassinadas, decapitadas, por norma; sei que Perséfone foi raptada por Hades e arrastada à força para os seus domínios no inframundo, enquanto em outros mitos mais antigos, como o de Inanna, a Deusa do Verão vai até ao inframundo visitar alguma pessoa das Suas relações de livre vontade; sei que Hera, uma Grande Deusa cretense, Senhora de tudo o que é, foi na Grécia clássica, patriarcal, reduzida à condição de esposa dum violador em série, transformando-se, pudera, na megera execrável que conhecemos; que a Medusa perdeu a cabeça; as Hespérides as maçãs de ouro que guardavam; que as Górgonas viraram monstros medonhos; que as Amazonas, que engrossaram as fileiras da resistência armada, não tiveram sossego; que Lilith foi banida por insubordinação; que Maria Madalena foi transformada em prostituta, que as Bruxas foram queimadas, ou seja, que as mulheres livres, senhoras e donas de si, têm tido nos últimos milénios muitos problemas… Sei que a mulher foi, é, um território conquistado… destituída das suas funções sacerdotais, afastada da vida pública, amputada de bens e direitos, encerrada no lar, como diria Riane Eisler, transformada em tecnologia de reprodução, em mera ajudante, em propriedade do patriarca…
Para resgatarmos do esquecimento e da ignomínia essas mulheres poderosas suprimidas no passado, para as vermos e entendermos quem foram e o que representavam, precisamos de ultrapassar a programação patriarcal e de educar o nosso olhar. Precisamos de nos matricular na Escola de Mistérios do Movimento da Deusa, das Feministas que olharam para os vestígios do passado a partir do sentir das suas entranhas; mulheres que acredito serem aquelas mesmas a quem se referia o Dalai Lama quando disse: “O mundo será salvo pela mulher ocidental”. Mulheres que entendem a importância de terem representação no panteão divino, sabendo que a Deusa foi a primeira divindade cultuada pela humanidade e que ao suprimir a Deusa a mulher ficou desamparada, sem respaldo, sem garante da sua força, do seu poder, sequer da sua legitimidade… e com isso muito perdemos todas e todas… Mas voltando a este livro em concreto, pude dar sentido às minhas descobertas graças ao estudo do trabalho das pioneiras do Movimento da Deusa que já referi, incluindo Marija Gimbutas e várias outras, mas muito especialmente o que funcionou para mim como uma espécie de pedra de roseta foi ter tido contacto com a cultura da antiga Britânia, Bridânia, como insiste agora Kathy Jones. A bibliografia a que tive acesso, o estudo que fiz durante a minha formação de Sacerdotisa de Avalon, forneceu-me uma indicação de que estamos na mesma zona cultural celta, a zona do Arco Atlântico, o que me foi confirmado pela investigadora Fernanda Frazão. Assim, para compreender todo o material recolhido aqui tive de cotejá-lo com aquele que ficou na tradição sobretudo da Irlanda e da Escócia sobre Brígida/Brigântia (o aspecto terra de Brígida) e sobre Cailleach, a nossa Cale, Cailícia ou Calaica-Beira. Foi uma emoção ver no material da Britânia o teónimo Beira, escrito exactamente como nós soletramos o nome das nossas províncias, sem nunca ter ouvido de nenhum arqueólogo ou etnógrafo nacional que se tratava do nome duma Deusa, da Senhora da terra, embora isso seja algo de muito óbvio que a divindade tenha dado o nome ao lugar. Encontramos então aqui todo um capítulo dedicada a Santa Brígida da Irlanda, com informação proveniente de várias fontes mas sobretudo de Gabriela Morais, da sua investigação sobre o antigo culto de Brígida, Brízida, Brigite, Brito, Brita, Brites, Britiande, Braz… sobretudo na zona de Lisboa, onde até existe, na igreja de São João Baptista do Lumiar, uma relíquia que é supostamente um osso da sua cabeça, oferecida a ninguém menos que o nosso já aqui referido rei Dinis, o nosso rei poeta, agricultor, neto de outro poeta muito famoso, Afonso X de Castela, autor das cantigas de Santa Maria, que fortemente suspeito, e não sou a única, ser o principal avatar cristão da Brígida celta, Deusa entre várias outras coisas da agricultura e da poesia.
Então a tradição de Iria no nosso território, da sua relação com as águas e com o sol, o fogo, com a cura, a profecia, a agricultura e a pastorícia, foi cotejada com a tradição de Brígida e as conclusões a que cheguei estão aqui… Visitei Iria nos lugares onde o seu culto foi, e é, mais intenso, Torre da Magueixa, Santarém, Tomar, Serra de Aire e, claro, Cova da Iria, onde continua bem viva a sua chama, adorada como a Senhora, ou a Rainha, do Verão, Aquela que regressa em Maio, como acontece no Almurtão, na Azenha, na Lousa… Em Tomar, no Ribatejo, fecha-se o ciclo, quando Ela é “morta” no final de Outubro, cedendo lugar à tempestuosa e temível Anciã do Inverno, a Velha, como é designada entre nós... Iria morre em Tomar, famosa cidade dos Templários, como sabemos. A estes cavaleiros prestativos, foi cedido, no século XII, o castelo e o termo de Ceras, topónimo que ainda hoje existe. Quem também ocupou a zona durante séculos foi o povo romano que cultuava a Deusa Mãe, Senhora do Grão e da abundância, dos cereais, Ceres, de quem Proserpina era filha. Uma donzela em tudo semelhante a Perséfone, filha de Deméter, ambas raptadas, uma em Roma outra na Grécia, pelo Senhor dos Infernos… no mês de Outubro… Ora aqui está um tema muito apelativo à nossa imaginação… E sim, Iria, como Rainha do Verão, é muito visível, muito celebrada, traz-nos os dias longos onde cabe a sesta, as colheitas, a abundância, o calor e a alegria do Verão. A sua contraparte Anciã, porém, é mais secreta, está mais escondida, mais furtiva, mas mesmo assim muito presente e nossa velha conhecida. Calaica é muito antiga e terá sido levada daqui para a Irlanda, onde continua a ser uma Deusa muito poderosa. Ela é aquela que se transforma em pedra por Beltane (ou pelo Imbolc quando consideramos a Roda do Ano dos Oito festivais solares). O que investiguei sobre Ela, levou-me a associá-la a Sheela-Na-Gig, o que foi um processo muito curioso porque a seguir encontrei outra autora irlandesa com a mesma ideia… Descobrir a Calaica e a sua força na nossa psique é uma tarefa muito promissora…
Os dois últimos capítulos do meu livro, entretanto são mais devocionais, com sugestões para celebrarmos hoje em dia estes portais do ano em que somos abençoadas e abençoados pela chegada da Rainha do Verão e nos preparamos para acolher a energia da Senhora do Inverno. No último capítulo apresento antigos rituais de cura muito usados neste território e convido-vos a pesquisarem outros na região onde vivem e a fortalecerem a relação com a Senhora da Terra onde nascemos, sabendo que outro nome para Deusa é Natureza!
Luiza Frazão Sintra, 23 de Janeiro de 2022
Imagens: 1. A Deusa Celta de Portugal: A Anciã do Inverno e a Rainha do Verão 2. Com a autora da capa, Sara Baga e o editor, Alexandre Gabriel 3. Com Andreia Mendes, autora do prefácio, fazendo a apresentação, e o editor Alexandre Gabriel