quinta-feira, 2 de março de 2023

O MISTÉRIO DAS NOVE IRMÃS

 

Afirma Kathy Jones, em Priestess of Avalon, Priestess of the Goddess (Sacerdotisa de Avalon, Sacerdotisa da Deusa), que “[Essas Mulheres divinas] são o princípio da sabedoria, que se manifesta na forma feminina para benefício de toda a humanidade. Elas são assim as protetoras da sabedoria, que nos acenam através da vibração e do som, ajudando-nos a vencer resistências no nosso caminho espiritual e trazendo-nos experiências da realidade inefável ou da graça divina. Elas ajudam ainda quem está a morrer a atravessar as portas da morte. São conhecidas no Budismo como emanações da mente iluminada, que mantém o propósito de procurar a iluminação não apenas para si própria mas para benefício do todo”.

À semelhança das Nove Morgens de Avalon, e de muitas outras, as Nove Hespérides abarcam todas as qualidades da Deusa, em todos os Seus aspetos, de Donzela e Anciã, de Criadora e Destruidora, de Senhora da Vida e de Senhora da Morte. Símbolos máximos da liberdade feminina, como as Dakinis orientais, inspiradoras guardiãs do conhecimento, como as Nove Musas gregas, elas dominam as sete artes liberais (Lógica, Gramática, Retórica, Aritmética, Música, Geometria, Astronomia/Astrologia). Na história da Deusa, Elas são famosas pela Sua força e talento, pela Sua beleza e sensualidade, pelos Seus dotes para a música, o canto e a dança, pelas Suas capacidades de profecia, pelo domínio das artes da cura e pela possibilidade de se metamorfosearem, de mudarem de forma, e de influírem nas condições do tempo atmosférico, proezas de que podemos encontrar eco nas nossas histórias antigas.

Esta instituição de nove mulheres, de nove sacerdotisas principais, poderá ter sido a antecessora dos conventos e dos mosteiros de religiosas e de religiosos. Viviam de preferência em lugares altaneiros, em montes sagrados, como as várias capelas dedicadas a cada uma delas, existentes ainda hoje em dia, nos dão testemunho, tal como várias lendas envolvendo certos montes e serranias. À volta destas mulheres de saber, fundaram-se vilas e cidades. Elas foram criadoras de civilização, dispensadoras do conhecimento disponível, da ciência, das artes e dos ofícios, de cura e profecia, servindo a Deusa no Seu Templo, vistas e sentidas muitas delas como a própria incorporação da Deusa na sua forma humana, tal como algumas famosas Dakinis, as Bailarinas do Céu do Tantra tibetano, ficaram conhecidas, por terem vivido como mulheres com existência historicamente comprovada. Esta é uma ponta do véu que já podemos começar a levantar, sem medo de exagero, para reescrevemos a História no feminino, até porque as visões de várias pessoas, cuja obra tenho lido ou que tenho ouvido pessoalmente, convergem todas no mesmo sentido. 

Um capítulo importante desta mesma História, que não podemos ignorar, é a forma violenta e atroz como o patriarcado emergente pôs fim ao poder e à independência destas mulheres e ao tipo de sociedade que ajudaram a criar, dando lugar a um outro completamente oposto, onde a rapina, a destruição e a conquista se tornaram norma, e onde a guerra e os seus perpetradores foram glorificados e cultuados como heróis. A contraparte dessa glorificação dos heróis masculinos foi a martirização das sacerdotisas da Deusa, sacrificadas numa luta desigual entre um sistema que chegava ao fim e um outro que começava, e a sua elevação à condição de Santas, que para mim é a melhor prova de que se tratava de mulheres de grande poder espiritual nas comunidades que serviam. Diz-nos a lenda que Elas foram mortas na defesa da Sua virgindade, ou seja, da sua liberdade de disporem do Seu corpo, da Sua sexualidade e da Sua vida como bem Lhes aprouvesse, recusando ser colocadas ao serviço do programa patriarcal. Em Os Mitos Gregos, Robert Graves fala-nos dum grupo de sacerdotisas da Deusa Atena que preferiram o suicídio à desonra de pertencer a um único homem. Também o caso histórico de Hipácia de Alexandria, que recentemente o cinema tornou conhecido do grande público, é um exemplo elucidativo daquilo que aconteceu a inúmeras mulheres de grande valor, mortas, ou simplesmente silenciadas. Progressivamente, as suas descendentes foram afastadas das fontes de conhecimento académico, subalternizadas, reduzidas à condição de tecnologia de reprodução da espécie, de serviçais, ou de escravas, completamente esquecidas dos tempos áureos em que criaram com a sua visão e sabedoria sociedades justas, igualitárias e prósperas, segundo um modelo que consensualmente se admite que foi aquele seguido por antigas culturas como a de Creta ou a de Çatal Hüyük, na Turquia.

MUSAS DA PROFECIA

Muitas destas Sacerdotisas da Deusa de outros tempos, de acordo com as lendas tecidas à sua volta, ou como referem as narrativas hagiográficas escritas por homens da igreja, terão sido decapitadas. Na verdade, a forma como, no decorrer do seu martírio, as cabeças destas mulheres são sistematicamente cortadas poderá ser uma importante pista para a revelação da real identidade e poder de que usufruíam. Depois de ler a exposição de Gabriela Morais relativa ao culto céltico das cabeças, ouso postular que as cabeças destas mulheres seriam consideradas membros preciosos de poderosas entidades, que, entretanto, terão entrado em declínio com a mudança do paradigma matrifocal para o patriarcal e consequente erradicação do culto da Deusa. Com efeito, diz-nos a autora de O Culto das Cabeças: “Ao que tudo indica, para os Celtas, a cabeça terá sido o lugar onde residia a alma, a pura essência da personalidade humana que, na sua iconografia, chegou a representar os deuses. Nesta medida, a cabeça possuiria atributos divinos e, na sua direta relação com as crenças religiosas célticas, para além de ser incorruptível e autónoma do corpo, teria poderes protetores – das pessoas ou coletividades, do gado ou da vegetação, fontes da sobrevivência –, divinatórios ou proféticos, de cura e de regeneração, poderes, em suma, xamânicos. Como tal, vamos encontrá-la, ainda hoje, inserida simbolicamente dentro das correntes de esoterismo. Assim sendo, poderemos olhá-la como representante do espírito, da criatividade divina expressa através do humano, que tomaria corpo na poesia, forma e suporte de toda a sabedoria, em consonância com o papel que o conhecimento intuitivo desempenha na psique humana, segundo o afirmam as ciências cognitivas. Nesta ordem de ideias, podemos compreender a função fundamental, mais tardia, junto de reis e príncipes, dos bardos, membros da mais alta classe sacerdotal céltica, os druidas, conhecedores dos segredos da Terra, do passado, presente e futuro.”

Ouso postular que a obsessão com decapitar o corpo destas sacerdotisas, profetizas, mulheres divinas, representantes ou incorporações da própria Deusa, poderia estar relacionada com os superiores atributos que os seus algozes lhes reconheceriam, em particular porventura o dom da profecia, de que tentariam assenhorear-se através da posse das Suas cabeças, lugares onde se acreditava que a própria alma residia.

in A Deusa do Jardim das Hespérides, Luiza Frazão, Zéfiro

Imagens:

1. Gruta del Cogul, Catalunha

2. Sintra, Santa Eufémia

3. Uma das capelas em sua honra, Senhora da Abadia, Gerês

4. Monte de Santa Quitéria, Felgueiras

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Em honra na próxima Conferência da Deusa Portugal 2024 - Deusa Iccona Loimina

Na nossa próxima Conferência da Deusa Portugal, que  acontecerá entre 10 e 12 de Maio de 2024, vamos celebrar a Deusa Amante e a energia de Beltane. 

Nesse festival, na nossa Roda do Ano da Deusa, está em honra Iccona Loimina, a Deusa Égua, a Égua branca, à semelhança de Epona, de Rhiannon ou Rigantona, cujo nome significa Grande Rainha. Ela é uma das nossas Deusas de Beltane, Deusa da Soberania da terra, da Fertilidade, da Sensualidade e da Sexualidade. Na Sua zoofania da Égua, ela representa a nossa natureza selvagem e indomável de mulheres. Ela é ainda uma Deusa psicopompa, Aquela que cavalga entre mundos, que, tal como Rhiannon, conduz a alma na sua última viagem até ao outro mundo. Na verdade, com a Deusa do Amor e da Sexualidade tanto vamos ao inframundo, onde enfrentamos a dor da perda das nossas ilusões amorosas, como aos céus em fantásticas experiências, que podem ser de fusão com a pessoa que amamos e com quem podemos vislumbrar as estrelas em orgasmos de cósmica dimensão.


Lugares da Deusa ICCONA LOIMINA

Uma referência à Deusa Iccona Loimina, uma oferta feita a esta Deusa, é mencionada na famosa inscrição do Cabeço de Fráguas, um dos Seus sítios de poder, portanto, que precisamente fica situado no lugar de Cabeço da Senhora dos Prazeres, freguesia de Benespera, concelho da Guarda.

 (Fonte: A Deusa do Jardim das Hespérides, Luiza Frazão)

Iccona-Loimina  segundo a academia

“São diversas as interpretações sugeridas pelos distintos investigadores que se dedicaram ao estudo do teónimo. J. Gil143; D. Maggi144; Witczark145 e Blanca María Prósper146, em exemplo, propõem a correspondência entre Iccona e a divindade céltica Epona, conhecida em outras regiões peninsulares. A relação que se estabelece no contexto religioso indoeuropeu entre divindades hipomórficas e atributos ligados à fecundidade é manifesta147, podendo, por conseguinte, sugerir uma relação entre Iccona e uma função ligada à fertilidade, justificando-se assim a oferta que lhe é prestada, em Cabeço das Fráguas, de um animal prenhe148.”

Diz-nos Daniela F. de Freitas Ferreira, em Memória Colectiva e Formas de Representação do (Espaço) Religioso, Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Mas a partir daqui as dúvidas da autora desta tese académica são variadas e ela acaba por pôr em causa a relação que Blanca María Prósper estabelece entre Iccona e Epona…

Fonte: https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/18921.pdf

Porém, numa recente pesquisa online acabei por encontrar um comentário muito interessante e válido dum investigador espanhol.

Eis o comentário e o pequeno diálogo que estabeleci com o seu autor:

Javier T. Rios - “No debería llamarse * ekwona , dado que los céltiberos eran celtas-q y no celtas-p? Creo que la forma "epona" está atestiguada en galo, está esta forma con "p" atestiguada en la península ibérica?” (Não deveria ser chamada de *ekwona, já que os celtiberos eram celtas-q e não celtas-p? Acho que a forma "epona" é atestada em gaulês, essa forma com "p" é atestada na Península Ibérica?)

Eu - Em Portugal existe uma inscrição a Iccona (Iccona Loimina), em Cabeço de Fráguas, distrito da Guarda, que algumas pessoas creem que poderámestar relacionada con Epona.

JTR – Obrigado pela informação.

Lembrando de resto que o cavalo pertence à família dos equídeos. 

Sobre Epona

“Eu invoco Aquela que é o livre empoderamento e manifestação da terra sagrada, o ponto imóvel dentro do movimento, a batida do coração da Terra e a batida do casco do coração.

Amada Epona; Deusa Cavalo da soberania e liderança, da resistência, iniciação e capacitação.

Senhora Liminal, Criadora Cósmica de todas as jornadas, incluindo aquelas através dos véus da morte e do renascimento, pois Teu é o útero-túmulo da criação e da destruição.

Grande Deusa, Rainha Soberana da sexualidade, da transformação, da alegria abundante e da liberdade, vem falar-nos dos Teus caminhos para que possamos conhecer-Te."

"A Deusa europeia Epona, uma Deusa central, definidora e unificadora da cultura e dos povos celtas, é um nome de origem gaulesa para a antiga Deusa Cavalo das e dos nossos ancestrais da Idade da Pedra e do Bronze. Eles A viam como a Grande Mãe liminar, o ventre-túmulo da vida, morte e renascimento, e como sua Rainha Soberana, não limitada às terras tribais imediatas, mas como a fonte, ou Deusa, da Soberania sobre um território muito maior.

Muito antes de Ela receber a forma humana, as culturas xamânicas europeias reconheceram a Sua forma de equídeo ctónica (= da terra) como mágica. Capaz de cruzar e transcender os limites de lugar e espaço, de diferentes dimensões, Ela tornou-se a guia através dos portais entre reinos ou mundos.

O cavalo como símbolo era emblemático da Deusa do útero-túmulo e da Sua sabedoria. Ela é a Mãe fértil, constante como o Sol e a Terra, formando e dando à luz a totalidade da vida, nutrindo e provendo, com uma abundância proveniente do submundo, que faz parte do Seu reino, parte de Seu grande ciclo de vida, morte e renascimento. Ela transportou-nos para, através de e para fora do inframundo.

Na Velha Europa, a sua forma de casco crescente yónico foi esculpida nas paredes da caverna de iniciação do parto para trazer proteção e orientação. Ligada à lua e aos mistérios do sangue da fertilidade, nascimento e morte, a Deusa Cavalo também foi associada às (nascimento)-águas da vida e como guia para os mistérios e iniciações, para o bem-estar e maior integridade. Ela era uma porta de entrada para os reinos ancestrais de onde a vida retornava, pois novas plantas crescem a cada ano na terra após o fim do inverno. Ela também estava ligada ao nascer do sol de inverno, a época do renascimento do sol, que Ela, como Cavalo Solar, representava e ao mesmo tempo dava à luz.


Com o passar do tempo, as pessoas viram Epona como o Cavalo Estelar das constelações que giram a grande roda do tempo. Ela se tornou a Grande Deusa do cosmos e das estações, dos espaços liminares entre os reinos, do poder, da virilidade e da fertilidade, das águas curativas das nascentes que surgem do submundo, da iniciação, do sol e da abundância, da liberdade, da honra, coragem, soberania e união sagrada.

A antiga Deusa Cavalo, no entanto, tinha uma natureza andrógena: ela era vista como Égua Divina, Potro/criança Divina, bem como Garanhão Divino. Continuando a partir da antiga visão de mundo centrada na Deusa, o parente andrógino da Deusa Cavalo, que se tornou conhecido por nós como Epona, se baseia na linha arcaica da mitologia, voltando ao mais antigo relato escrito da Criação na antiga Suméria, que se tornou o práticas mitológicas e rituais da União Divina.” 

Fonte: Katinka Soetens (Sacerdotisa de Rhiannon)

Imagens:

1. Arte de  EJ Lazenby http://www.animalfineart.co.uk/

2. Inscrição de Cabeço das Fráguas http://www.portugal2050.com/visite/guarda/cabe%C3%A7o_das_fr%C3%A1guas?p=49e3a0c5-fc0c-42d0-ae56-006df881c9f1&c=e9ceb0ed-af1e-4d6d-9f23-a81839e67213pona, 3o. séc. A.C., de Freyming (Moselle), França (Museu Lorrain, Nancy)

Imagens Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Epona

3. Epona, 3o. séc. A.C., de Freyming (Moselle), França (Musée Lorrain, Nancy)

4. Epona e os seus cavalos, de Köngen, Alemanha, cerca de 200 a.C.

5. Um apoio de Epona, flanqueado por dois pares de cavalo, da Macedónia Romana



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

LENÇO DE NAMORADAS - Artefactos das Mulheres, Artefactos da Deusa

 

Em 2013 dinamizei um workshop, incluído numa celebração de Beltane do Templo, cuja actividade central consistia na criação dum Lenço de Namorados, que é um artefacto muito da nossa tradição (mas não só), realizado em tempos pelas mulheres do Minho, mais precisamente de Vila Verde, para oferecem ao eleito do seu coração. A autora era muitas vezes uma rapariga do campo, pouco letrada, que sobre o tecido de linho bordava versos singelos, escritos em má ortografia (erros em que certamente o rapaz também não teria muitas condições de reparar…) e desenhos ingénuos.

Hoje em dia essas prendas de enxoval são consideradas obras de arte popular, muito apreciadas e valorizadas, e com razão, replicadas e vendidas no mercado a preços muitas vezes proibitivos. Mas na altura, tendo em conta que o nosso primeiro compromisso deve ser connosco mesmas, antes de nos comprometermos seja com quem for, para não nos dissolvermos, digamos, na relação, tive a ideia - e concretizei-a com um grupo de mulheres por Beltane - de juntas concebermos um lenço pessoal, que funcionasse como o garante material de um compromisso assumido antes de mais connosco mesmas.

Nunca esquecerei essa actividade tão sagrada, e ao mesmo tempo divertida, e tenho o meu lenço de bolso pessoal religiosamente guardado para ocasiões especiais.

E que ocasiões podem ser essas em que, em algumas partes do mundo, como na Grécia actual, as mulheres continuam a usar os seus lenços de bolso como símbolos sagrados e muito arcaicos do seu poder pessoal, do seu poder de criar e de liderar?

Um artigo sobre este tema dos lenços que encontrei há dias numa revista online responde a essa questão. A autora, Laura Shannon, fala-nos da forma como estes itens eram vistos por sociedades matrifocais do passado que cultuavam a Deusa. Eles representavam uma espécie de prolongamento, ou de representação da própria mão da Deusa. Sabemos do poder deste membro divino pela importância que continuamos a dar à famosa mão Hamsa, a Mão de Fátima, ou de Maria, usada por tantas pessoas no mundo como um poderoso talismã de protecção.

Essa mão da Deusa, que por vezes ostenta uma decoração em forma de vulva, diz-nos a autora, remete precisamente para os Seus divinos poderes criadores e protectores. E a autora cita o exemplo da Grécia actual, com as suas danças tradicionais de mulheres em que este artefacto funciona para elas como um símbolo de poder pessoal e de liderança. A mulher que comanda os movimentos da dança, usa-o na mão e depois passa-o à mulher que a revezará nessa função. Na realidade, esse poder de dirigir a dança será partilhado pelo grupo de mulheres, e é através da passagem do lenço de mão para mão que essa partilha se concretiza:

“Na cultura da dança ritual feminina, toda a mulher deve ser capaz de orientar o círculo de dança no momento apropriado. Entre outras coisas, o seu lenço significa a sua disposição de assumir o papel de comando quando for a sua vez – na dança e na vida – e mostra que a sua comunidade pode contar com ela sempre que necessário. Desta forma, o lenço, sempre presente nas roupas folclóricas das mulheres, comunica os antigos valores europeus de apoio mútuo, responsabilidade coletiva e liderança partilhada que são tão centrais para a cultura da dança tradicional”.

 Nas palavras de Laura Shannon, “Na Grécia de hoje, as mulheres fazem o seu mandíli com intenção de oração, não muito diferente de outras tradições sagradas da arte popular, como os rushnyky, panos rituais bordados pelas ucranianas. Normalmente, o mandíli é branco, orlado com bordados, rendas, missangas ou lantejoulas para proteger quem o usa de energias negativas ou do 'mau-olhado'. Às vezes, o mandíli apresenta símbolos concretos, como esta figura bordada da Deusa/flor com raios de sol vibrantes no lugar da cabeça e das mãos.

E conclui:

“Quando dançamos as danças antigas, descodificamos os símbolos sagrados e assumimos o papel de liderar, afirmamos o nosso próprio poder inato de trazer um novo modelo de liderança a um mundo que precisa urgentemente que avancemos nesse sentido. Quando conduzo a dança com um mandíli na mão, sinto que estou hasteando uma bandeira esquecida de uma nação de mulheres há muito perdida – mulheres que um dia souberam tecer, trabalhar e adorar juntas, com confiança e alegria. E o mandíli afirma que ainda nos lembramos”.

Na verdade, os lenços de bolso têm uma muito longa e rica história de uso em épocas mais recentes, em várias partes do mundo, nomeadamente para a comunicação secreta entre as e os amantes*. No entanto, faz todo o sentido aprofundarmos o estudo da sua origem e integrá-los na antiga cultura da Deusa que agora com tanto entusiasmo regatamos e que lhes deu origem.

Isto pode então dar aos Lenços de Namorados portugueses de Vila Verde, no Minho, toda uma outra contextualização e sentido, e a questão que surge é: Será que a ênfase actual no papel exclusivo deste item como um “lenço de namorados” não espelha exatamente o que enquanto mulheres temos feito com o nosso poder pessoal na cultura onde vivemos?

Entretanto, muitas imagens de trajos tradicionais portugueses, como esta que aqui apresento, mostram-nos as mulheres usando lenços na cintura. Por certo eles são considerados apenas "de namorados", mas a verdade é que o seu significado parece ser bem mais arcaico e poderoso.

Tal como afirma a autora deste artigo, acho que vale muito a pena resgatarmos o antigo e poderoso significado que as nossas antepassadas deram um dia a estes artefactos sagrados da Deusa!

© Luiza Frazão, Sacerdotisa responsável pelo Templo da Deusa de Óbidos


Poderá encontrar aqui o artigo original de Laura Shannon:

https://feminismandreligion.com/2023/02/09/womans-sacred-hand-and-handkerchief-by-laura-shannon/

*https://www.dailysabah.com/feature/2016/02/19/handkerchiefs-the-secret-language-of-love,


Imagem 2 https://www.sapatosnamorarportugal.com

Imagem 5: http://trajesdeportugal.blogspot.com

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O PODER MÁGICO DA ORAÇÃO

“Ao longo dos séculos, mesmo na escuridão da perseguição e das violências, pessoas alcançaram “milagres” pelo uso correcto da oração. A oração é um meio para transmitir e receber energia de um ponto para o outro, em busca de alento, alegria, inspiração, força, cura, auxílio, paz e graça. Descrita como “força vital universal” esta energia é um vórtice vivo e vibrante que existe em todo o universo e está ao alcance de toda a gente. Se o poder da oração fosse compreendido e praticado diariamente, não somente a vida das pessoas iria mudar, mas o mundo inteiro. A oração é um acto de fé que busca ativar uma ligação, uma conexão, um pedido, um agradecimento, uma manifestação de reconhecimento ou, ainda, um acto de reverência e gratidão diante de um ser transcendente ou divino. Ela pode envolver o uso de palavras espontâneas ou decoradas, mantras ou repetições de certos sons, visualização de um determinado arquétipo divino ou sobre natural para “falar”, desabafar, pedir, ouvir ou agradecer. Existem diferentes formas de oração, como a de súplica, adoração, gratidão, louvor, em busca de orientação ouvida ou intuída, para alcançar um determinado objectivo, seja em benefício próprio ou para o bem das outras pessoas ou do planeta, sem tentar interceder de forma específica, apenas pedindo para que o plano divino encontre o melhor caminho para ajudar. Segundo Mahatma Gandhi a “oração é a chave que abre a porta da manhã e fecha a da noite. Ela é o meio mais potente de acção, mas requer, sem dúvida, uma fé viva. A fé nasce na calma do espírito, na contemplação e no trabalho. A oração não deve ser dirigida apenas para invocar ajuda. É também louvor, glorificação e um acto de purificação”.

A real e actual crise na Terra é a falta de energia espiritual e a oração seria o melhor meio de ajudar a solucionar essa crise, independentemente de para quem se ora: Deus, Deusa, o Grande Espírito, a Mãe Terra, Orixás, Anjos, Santos, Guias, Devas, Mestres ou ancestrais. O amor e a fé são mais importantes do que a crença – a oração não pertence apenas às e aos escolhidos, ela é o direito de nascimento de todas as pessoas. Desde que haja fé, ela pode ser vista como como uma canção da alma que expressa luz ao seu redor, que ajuda a elevar, curar e beneficiar todas as pessoas e tudo o que existe. É importante lembrar-se de honrar e abençoar as dádivas que a Mãe Terra nos oferece diariamente, em todas as circunstâncias, ocasiões e momentos, nem sempre como recompensa ou resposta, mas como aprendizagem ou desafio para o nosso crescimento (…)”.

Mirella Faur

Prefácio do Livro de Orações à Deusa, Cler Barbiero de Vargas

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

LUZIA, antiga Deusa do Solstício de Inverno ainda cultuada em Portugal

 

O Solstício de Inverno é o tempo abençoado da Deusa Anciã, da Senhora dos Ossos, da Pedra, da Montanha e do Inverno. Senhora daquilo que sobrevem à morte, do que resta, do que é eterno e sem forma, do puro Espírito - respiração espiritual da terra, sopro vital, que no vazio do Inverno, quando a terra adormecida repousa e recobra forças para o novo ciclo, zela pela chama do Fogo da criação, sonhando com a nova vida.

É assim que a Deusa Anciã, como é celebrada neste festival, toma a Sua forma de Donzela para levar o Fogo para o interior, para que se mantenha em segurança e as brasas da lareira do coração da casa, da comunidade e de cada um e cada uma de nós não se apaguem durante a longa travessia do Inverno. Na verdade, em várias partes do Hemisfério Norte, Ela é celebrada como Luzia, ou Lúcia, que a igreja cristã reduziu à condição de santa, na noite de 12 para 13 de Dezembro, a antiga data do Solstício de Inverno, segundo o calendário Juliano, que perdurou desde 46 da nossa era até 1582, ano em que foi substituído por outro, o gregoriano, imposto pelo papa Gregório XIII.

Em Portugal, Luzia também é celebrada em muitos lugares nessa noite, com fogueiras e convívio animado, que implica partilha de alimentos, música e dança. Devo dizer que tive no ano de 2021 o privilégio de ir pela primeira vez a essa celebração deliciosa, em Usseira de Óbidos, que tão profundamente aqueceu o meu coração e avivou o meu espírito e o meu sentimento de integração na comunidade, quando precisamente ainda estávamos a viver a quarentena.


O nome desta divindade, Luzia, ou Lúcia, deriva de lux, que é luz em Latim, e os Seus poderes compreendem o de proteger a visão. Consta do Seu lendário que parte do martírio a que foi sujeita consistiu em lhe serem arrancados os olhos. Se interpretarmos esta história à luz dos Seus divinos poderes pagãos arcaicos, percebemos que a mensagem coincide com a proposta deste tempo de interiorização, de hibernação, quando a visão mais importante é a interna e não a externa.

Em outra lenda, Luzia usa uma coroa de velas acesas sobre a cabeça, o que lhe permite ter as mãos mais livres para transportar alimentos, quando penetra nas catacumbas romanas para dar assistência a quem aí terá sido obrigada/o a refugiar-se. A memória dessa coroa de velas torna-se patente nas belas procissões de Santa Luzia, que todos os anos se realizam nesta data nos países nórdicos.

Ela é assim a Deusa Anciã, no Seu avatar de Donzela, que leva a luz para o inframundo do Inverno profundo, guiando-nos nestes tempos sombrios, abrindo a nossa visão interna, iluminando o que é realmente importante, alimentando com a Sua sabedoria essa chama, trazendo-nos insights e inspirando-nos neste tempo de sonharmos a nossa vida como a queremos. Aí, o Seu poder ilumina as sombras da melancolia, do pessimismo, do isolamento, da depressão. Para que essas sombras não se apoderem da nossa alma, nem da alma da comunidade. Saímos de casa nessa noite para o largo da nossa “aldeia”, e acendemos-Lhe fogueiras, em gratidão, a essa Deusa que sabemos que vela pelo nosso fogo interno, pela nossa esperança nela, que incuba a preciosa chama da vida e a vai manter protegida até retornar como a Sua própria Donzela pelo Imbolc.

 Nas brasas desse fogo nos aquecermos, bem como na chama do calor humano que todas e todos geramos nessas ocasiões abençoadas, em profunda alegria e confiança por estamos juntas e juntos e podermos contar uns e umas com as outras na longa e penosa travessia da estação fria e nocturna, sabendo que se alguma chama se extinguir, em outras se poderá reacender.

 A celebração do Natal é herdeira destas tradições do Solstício e em muitos lugares também se acende nessa noite e pela do Ano Novo, no centro da aldeia, o tronco natalício, ou o madeiro do Natal.

 Peçamos então à Deusa Anciã do Inverno, Mãe do Ar, que com o Seu sopro mantém acesas as brasas do fogo da nossa alma, que nos traga a Sua sabedoria para podermos de novo regressar ao alinhamento com o significado mais genuíno destas celebrações do Inverno, libertando-as das garras do consumismo. 

 Conectadas antes de mais com a nossa alma, com o profundo amor e sabedoria da Deusa em nós, é possível reencontrarmos o mais puro sentido destas festividades na essência pagãs, e sentirmos o prazer e a alegria de simplesmente estarmos juntas e juntos, no aconchego do calor do nosso fogo partilhado. Quer estejamos em família, quer não, o segredo é sentirmo-nos conectadas e conectados ao nível da alma com a Grande Família Humana e com a intensa corrente de amor que todos e todas juntas conseguimos gerar.

 Acredito que estes são tesouros da Anciã do Inverno, escondidos no nosso interior, na secreta natureza do Inverno, com essa magia a que apenas se acede no silêncio e na quietude, onde recebermos o sopro da Vida que chega até nós no Seu Ar em movimento, trazendo-nos sussurros e insights de outras dimensões, conexão com o Espírito eterno, que no vazio e na escuridão, sonha, desenha e prepara o surgimento da nova Vida, quando, pelo Imbolc, a Luz regressar do inframundo. Abençoada.

©Luiza Frazão 

Imagens:

1. Celebração de Santa Luzia, Usseira de Óbidos, 2021

2. Santa Luzia, Santa Maria da Feira

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Celebrando Yule, o Solstício de Inverno

 Esta época em que mergulhamos no Inverno profundo representa um momento de pausa e reflexão, de desaceleração e repouso, para estrarmos em sintonia com a natureza da qual somos parte. É tempo de deixar ir tudo aquilo que está velho em nós, que já deu o seu fruto e que já não tem razão para existir na nossa vida. Deixemos que tudo isso se decomponha, entre em compostagem, para servir de nutriente à nova criação, com a qual somos convidadas e convidados agora a sonhar.

Esta época de dias curtos e noites longas, de escuridão, é propícia a uma avaliação do vivido no ciclo anterior, para entendermos o que deu certo e o que correu menos bem, o que na próxima volta da roda da vida pode ser corrigido, revisto, feito de outra maneira, melhorado.
A proposta é para que aprofundemos também a nossa relação com a natureza, que no Inverno é muito mais mágica. Apesar de tudo o que está apodrecido, envelhecido, húmido, há tanta beleza nesses fungos que transmutam matérias putrefactas, nos galhos secos caídos, nas formas, nas ervas que persistem, viçosas, aromáticas, ancestrais e sagradas, parte da nossa herança, associadas a crenças, a lendas e mitos, que nos dão cura e alimento, que seria uma perda muito grande não usufruirmos dela.

Este é um tempo em que caminhar pelos campos frios, cobertos de brumas e geada, sentindo o vento cortante da época, observando as teias de aranha, essa opulenta tapeçaria belamente entretecida pela Grande Tecedeira, é para mim parte integrante do encanto da estação. Passar pelos meses do Inverno sem ter frequentado o campo e caminhado pela paisagem não faz sentido para mim; porque a beleza do Inverno é tão delicada e subtil, menos óbvia do que a das outras estações, ela exige de nós outra atenção às pequenas coisas, ao rendilhado das teias, do musgo, dos fungos, às formas dos galhos nus retorcidos, das folhas caídas pelo chão já em avançado estado de decomposição, às águas que escorrem pelas terras, pelas encostas, onde se abrem regatos, pelos vales por onde serpenteiam ribeiras a transbordar. É impossível mantermo-nos tristes ou deprimidas quando podemos caminhar pela natureza, ouvir os sons do vento, das criaturas dos ares, das águas, observar as inúmeras plantas e o estado em que estão, umas decompondo-se, outras permanecendo vivazes, outras florescendo até, abrindo para o sol breve dos dias as suas pequeninas flores amarelas, como as Azedas e a Calêndula, ou violeta como a Pervinca das Feiticeiras.

Tempo de interiorização que nos convida também a uma relação diferente com a nossa comunidade, mau grado a estridência gerada pelo comércio, pelo consumismo do Natal. Mas aqui ganha-se em intimidade, em conexão ao nível da alma. Sabemos que a pessoa está lá, que podemos contar com ela e isso basta muitas vezes. Tempo muito propício para conhecermos mais profundamente as histórias da nossa família, da nossa ancestralidade, da nossa linhagem e da do nosso território e cultura. Com a vida mais inclusa, tudo ganha em serenidade e profundidade e sentimos as correntes mais subtis de energia que nos conectam e a teia subtil que liga todos os seres. É também boa altura para termos revelações e para isso o desafio é estarmos mais presentes para o que é, a fim de podermos aceder a outras dimensões do conhecimento.

Nesta estação, é possível, por exemplo, ficarmos a conhecer aquilo que até aí era secreto ou estava velado. Desconhecia por exemplo, que a cidade junto da qual vivo e que amo do fundo do coração, Caldas da Rainha, famosa pela sua cerâmica, teve como pioneira na divulgação e comercialização destas peças uma mulher nascida no final do século XVIII, que ficou conhecida como Maria dos Cacos, a primeira empresária da cerâmica.* Este é um tipo de informação que acrescenta à alma da cidade e faz sentido ter chegado até mim precisamente num mês de Dezembro, e possivelmente neste mais do que em qualquer dos anteriores, uma vez que frequento esta cidade há mais de quarenta anos. A verdade é que foi este ano e em mais nenhum outro que a celebração de Yule do Templo aconteceu aí. Mas trata-se apenas dum exemplo entre os vários que poderia referir ao nível de informações que chegaram até ao meu conhecimento nas húmidas profundezas do Inverno...

Yule também nos convida a uma reflexão sobre os desafios com que nos deparámos por altura dos dois últimos eclipses, no final de Outubro e no princípio de Novembro, e é possível que mais alguns se apresentem agora, ajudando-nos a entender o que está em causa e o que devemos reciclar ou ressignificar, para crescermos como seres humanos.

Reflectir sobre o tipo de alimento por que anseia a nossa alma, sobre aquilo que a nutre, as actividades, as ideias, as crenças, as pessoas que a expandem e como é que as nossas escolhas de vida podem estar mais alinhadas com a essência de quem somos também são propostas deste templo de silêncio e quietude.

Esta é então uma pausa muito sagrada da terra, entre dois ciclos da criação, que devemos respeitar também em nós, como parte que somos da natureza.

CINCO PROPOSTAS DE ACTIVIDADES DE YULE

1.Escolhe um dia para caminhares pela natureza secreta do Inverno, um passeio de preferência solitário para melhor poderes sentir a terra e os elementos, meditando sobre os processos da natureza, sobre a forma como o ciclo da criação termina, como a terra se liberta do velho, como os destroços entram em decomposição, são destruídos, dissolvidos e absorvidos, para servirem de nutrientes à nova criação. Sente como a terra toma o seu tempo para repousar, para conceber a nova criação, e escuta as suas mensagens de sabedoria.

2. Faz uma doação de alimentos a um banco alimentar ou a alguma instituição de solidariedade social, honrando a tradição de solidariedade e de partilha que permitiu às e aos nossos antepassados sobreviverem aos rigores da estação em que a terra descansa e nada produz.

3. Prepara a celebração de Natal em conexão com a tua Criança Interior, preferindo elementos naturais e significativos para ti, recorrendo à tua criatividade para melhor desfrutares dos encantos da simplicidade, evitando o mais possível o consumismo que destrói matérias primas, cria lixo e polui a natureza.

4. Liberta-te de itens da tua casa arrumados há muito tempo por falta de préstimo, deixando que outras pessoas lhes encontrem utilidade.

5. Pesquisa sobre e cria um Mapa do Tesouro para o próximo ano.


quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Tomar 20 de Outubro - Despedida da Senhora do Verão

 

No nosso calendário da Deusa do Jardim das Hespérides, foram incluídas, para além das dos festivais da Roda do Ano, duas datas muito significativas na nossa tradição: 13 Maio e 20 de Outubro. Em Maio, celebramos o regresso da Rainha do Verão e em Outubro dela nos despedimos para acolhermos a Anciã do Inverno. Este é um culto muito arcaico da Deusa de Dupla Face, Calaica-Beira, a Senhora da Terra do Meio, que continua bem vivo na nossa tradição. Por isso, nós, mulheres e homens da Deusa deste tempo, celebramos cada vez com maior intensidade momentos tão importantes do tempo cíclico da Deusa. Os dois lugares que melhor conservam a memória destes antigos cultos no nosso território são sem dúvida a Cova da Iria e a cidade de Tomar. No primeiro, a Senhora aparece a 13 de Maio, e fá-lo nos seis meses consecutivos, sempre no mesmo dia, até à Sua despedida a 13 de Outubro. Uma semana depois desta data, a 20 deste mesmo mês, Ela é “morta” em Tomar. Este facto não deixa de fortemente nos sugerir que estamos perante a actualização do mito da alternância das estações, cuja versão mais famosa é a do rapto de Perséfone, que na Grécia antiga também acontecia no mês de Outubro, quando a estação muda, a natureza morre e a Deusa nos mostra a Sua face de Anciã da Morte, Transformação e Renascimento. Nesta fase invernosa, Ela é agora Calaica, a Senhora do Inverno.


A nossa primeira celebração deste tema da Deusa Dupla aconteceu online, em 2020, e a segunda foi na nossa Conferência da Deusa de 2022, dia 13 de Maio, com um grupo de formandas da primeira espiral do treino de Sacerdotisa da Deusa realizando uma bela cerimónia dedicada ao acolhimento da Rainha do Verão. Maio, no nosso território, é de facto um mês muito importante da Deusa, repleto de festas em Sua honra, não só na Cova da Iria, como também no Almurtão, na Senhora da Azenha, na Lousa, no Monte de Quitéria em Felgueiras, e em vários outros lugares onde o povo se regozija com o retorno da face jovem da natureza da Deusa, que derrama pelos campos a beleza das flores e todas as promessas de abundância da terra fértil e dos dias longos e ensolarados, quando a alegria do convívio e da festa encurta ainda mais as breves
noites de verão.
Porém, tal como celebramos a Senhora do Verão, celebramos também a Senhora do Inverno, e não existe melhor lugar neste país para acolher a face Anciã da Deusa do que Tomar. Com efeito, esta cidade do Ribatejo acabou por conseguir conservar as celebrações da antiga religião da Terra, no seio da instituição que a destruiu, como de resto aconteceu com várias outras comemorações em outros lugares. Mas Tomar, tal como refiro no meu livro, A Deusa Celta de Portugal: a Rainha do Verão e a Anciã do Inverno, pela riqueza de lugares sagrados relacionados com a antiga celebração do mito da alternância das estações, é especial para nós. A própria morte de Iria é uma actualização do mito do rapto de Core/Perséfone, a Proserpina cultuada pelo povo romano, que habitou a área. E nem sequer falta em Tomar a memória de Hades, o raptor de Perséfone, conservada no velho lintel da Sua antiga porta para o inframundo, que entretanto foi deslocada para lugar de tipo oposto ao original, certamente para nos trocar as voltas.
Comecei as minhas peregrinações solitárias a Tomar nesta data, no ano de 2020. Como estávamos em época de pandemia, apenas consegui ver as pétalas sobre as águas do Nabão, junto da Ponte Velha, nas imediações do antigo convento de Santa Iria, lançadas bem cedo, possivelmente por crianças de algum infantário ou escola que permanecera em funcionamento. Em 2021, porém, fui acompanhada da Sacerdotisa Cristina Grumete e de uma sua amiga, e para essa ocasião criámos a nossa oração especial para acolhermos a Senhora do Inverno. Já em 2022 éramos nove Sacerdotisas do Jardim das Hespérides e uma participante natural da cidade de Tomar, que se revelou uma preciosa bênção da Senhora do lugar. Criámos então uma programação de um dia, que começou pela visita à igreja de Santa Maria do Olival, já que, como eu defendo sempre, Santa Maria parece ser um avatar desta Grande Deusa celta no nosso território; acredito ser Ela a herdeira das tradições de Brígida/Brigântia e sobre a Sua relação com Iria largamente escrevi no meu livro acima referido.
Quando, entretanto, chegámos a Santa Maria, verificámos que estava a decorrer uma missa, a seguir à qual haveria uma procissão até ao rio onde as pessoas lançariam as suas oferendas de pétalas de rosas. Resolvemos assim que iríamos esperar, e enquanto o fazíamos conversávamos sobre aquele templo cristão tão importante, que ficava no casco da antiga cidade romana, e quem sabe o que haveria ali antes dele ser um templo cristão. Trata-se dum monumento central na cidade, e a torre que vemos junto dele acredito que seja a representação dum Axis Mundis, um “eixo do mundo”, que estabelece a ligação entre os três mundos, o de cima, o do meio e o de baixo. É deste lugar tão sagrado em Tomar que, neste dia, sai a procissão até ao rio.

Quando o serviço religioso católico terminou, seguimos o cortejo, que foi encabeçado por nada mais nada menos que um tocador de gaita de foles, seguido de clérigos, acólitos, bombeiros e demais habitantes de Tomar que carregavam o andor com a imagem da Senhora da Terra do Verão. Mais atrás seguia um grupo de nove mulheres, vestidas com trajos de época, transportando cestos de rosas e cantando os versos populares que relatam o mito do assassínio de Iria, com todo o cru vocabulário evocativo do crime. Ouviam-se termos como “algoz”, “carniceiro”, degolar”, “morte”, que precisamente nos situavam na energia no tema da celebração: a morte da estação quente, o fim dos dias longos e ensolarados, da fartura da terra e prenúncio da chegada bem próxima da estação invernosa, que para os povos do passado representava uma real ameaça, muitas vezes associada à morte, pela escassez dos alimentos, que gerava fome e dava origem a guerras pelos parcos recursos.
Este é portanto um momento pesado de tristeza e de receio até pelos excessos do tempo, das enxurradas, do frio, da geada, das tempestades do Inverno. Os povos ribeirinhos pediam, e continuam a pedir, em particular à Deusa protecção contra os excessos das águas, contra a devastação das cheias, que ainda hoje são uma ameaça real para as gentes da Ribeira de Santarém, lugar onde, segundo reza a lenda, o cadáver da Santa terminou o seu périplo rio abaixo, depois de ter sido levado pelas águas de Nabão, do Zêzere e finalmente do Tejo.
A procissão acabou por ser de facto muito emotiva e muito bonita. Chovia, não muito, mas alguns abençoados pingos de água caíam do céu ainda quando parámos sobre a Ponte Velha e lançámos as nossas pétalas de rosas vermelhas. Muitas pessoas levam rosas brancas para lançar ao rio, outras escolhem-nas em cor-de-rosa e em branco. As oferendas que tradicionalmente se faziam às Deusas das águas, porém, eram de pétalas de rosas vermelhas, porque é o vermelho do sangue, do sangue da vida, o equivalente ao ocre vermelho que os povos antigos colocavam sobre o cadáver quando faziam os enterramentos e que é um totem de protecção do ciclo da vida, uma garantia de regeneração, após a dissolução da velha forma. Na verdade esse vermelho é a cor do sangue uterino da Grande Criadora. Claro que muitas pessoas escolhem o branco porque Iria na lenda é uma jovem inocente, uma virgem, que prefere morrer a casar com um pretendente abusivo e o branco alude então à pureza e à inocência e está muito bem.

Depois desta devoção, deste desvio, que afinal foi uma bênção inesperada, por toda a beleza e emoção de que desfrutámos, como já era hora do almoço, fomos fazer o nosso piquenique, abrigadas nas tendas exteriores do mercado, já que os pingos de chuva continuavam, persistentes, a cair do céu. Depois disso, fomos até à margem do Nabão, onde criámos o nosso altar e fizemos a nossa cerimónia em devoção a Iria como Rainha do Verão. Ela começou com a invocação dos quatro elementos e de Iria no Centro. Lembrámos em seguida os nossos principais desafios e dores do verão e carregámos com essa dor uma pedrinha que lançámos depois às águas que corriam junto de nós. Após essa partilha, evocámos e partilhámos todas as dádivas do Verão e acendemos uma vela que impregnámos com o fogo e a energia da nossa calorosa gratidão à Rainha do Verão. Soprámos depois esse fogo para o nosso coração, para que permaneça connosco e nos dê forças para atravessarmos a estação fria da Anciã. Cantámos ainda a nossa canção de Despedida de Iria, especialmente criada para esta celebração, após o que fechámos a roda e desfizemos o nosso altar.
Foi então que nos dirigimos à mata de Tomar, e uma vez aí, fomos até à porta de Hades. Trata-se do lintel duma entrada, que segundo a tradição era dedicada a Hades, Senhor dos Infernos, e está decorada com uma serpente e duas cabeças de dragão, uma de cada lado, cujos corpos estariam nas duas pedras laterais em falta. A pedra está deslocada ali, porque, sendo ela do Senhor dos Infernos, a Sua porta teria de dar para o submundo. Seja como for, ela conserva essa memória e energia. Aí acendemos uma vela e invocámos a nossa sombra; lembrámos que quando não assumimos os nossos aspectos mais desafiantes, eles vão ser-nos apresentados por outrem, alguém vai projectar isso sobre nós; alguém vai assumir isso para nós podermos ver claramente; outra pessoa vai mostrar-nos no seu espelho aspectos de nós que recusamos ver e podemos ser “raptadas” para o inframundo também, como Core/Perséfone ou Proserpina. Partilhámos então sobre o nosso primeiro “rapto”, a primeira experiência mais dolorosa que cada uma sentiu como um rapto. Não só partilhámos como exprimimos a nossa dor de forma vocal e libertadora. Em seguida comemos os seis bagos de romã, como Perséfone, pedindo-lhe protecção para as nossas idas ao inframundo, ajuda para viajarmos em segurança pelos infernos da dor, da perda, da traição, da depressão, ou para comunicarmos com quem já partiu para lá do véu.
Oferecemos depois as romãs a Hades, agradecemos-Lhe e descemos até à Gruta do Sangue, onde fizemos a invocação de todas as faces da Senhora do Inverno. Tal como tínhamos feito para a Senhora do Verão, invocámos ali para o nosso círculo a Rainha Donzela do Inverno, A Rainha do Fogo do Inverno, A Rainha Amante do Inverno, a Rainha das Águas do Inverno, a Rainha Mãe do Inverno, a Rainha da Terra do Inverno, a Rainha da Morte do Inverno, a Rainha do Ar do Inverno e a Rainha do Centro do Inverno. Protegidas por essas energias, continuámos a nossa devoção, apresentando às participantes a oração que tínhamos criado no ano anterior, eu e a Sacerdotisa Cristina Grumete, para acolhermos a Senhora do Inverno:

Senhora do Inverno,
Cobre-me com o Teu véu negro
Que eu veja dentro de mim

Nos rigores do Inverno,
Protege o fogo do meu coração
Activa o fogo do meu caldeirão

Com a tua foice
Remove os obstáculos
À minha transformação

Sê bem-vinda ao meu ser interno,
Senhora do Inverno

Distribuímos em seguida postais ilustrados do Templo, dedicados ao Samhain, com um corvo desenhado pela Sacerdotisa Cristina Grumete, e cada uma pôde escrever nele essa oração, pela sua própria mão, para ser oferecida à Anciã do Inverno no Seu tempo. Depois disso, todas em uníssono oferecemos esta oração à Deusa, acompanhada dos respectivos gestos e movimentos. No final, cantámos a canção Oração Viva, inspirada num original de Sally Pullinger, fechámos a roda e despedimos com gratidão as energias. Depois da partilha de como cada uma tinha vivido a experiência daquele dia tão preenchido, finalizámos cantando a canção com que terminamos todos os nossos encontros.
Mas a nossa peregrinação mesmo assim não tinha terminado completamente. No grupo, tínhamos uma irmã natural de Tomar que nos levou a ver as pias dos lagares dos Templários, com as suas formas uterinas, muito semelhantes àquelas que podem ser apreciadas em Creta, no templo de Hagia Triada, nas quais se fazem ainda hoje libações à Deusa. Percorremos ainda um bom troço da mata dos Sete Montes, indo até à Charolinha, um monumento que lembra o Lingham e a Yoni do Tantra tibetano, o acasalamento, a união do feminino e do masculino, central na criação da vida. Nas imediações, existem pequenas grutas, que, pelo arranjo de escadas que exibem, terão sido, ou são ainda, usadas para algum fim cerimonial.

Pudemos ainda observar e usufruir da beleza e da energia dessa mata maravilhosa, com as suas espécies autóctones, como pinheiros, carvalhos, medronheiros, loureiros, faias, alecrim, entre várias outras.
Saímos da mata já quase à hora do fecho dos portões, mas ainda assim tivemos tempo de cumprir a última parte do nosso programa, que era irmos à feira abastecer-nos dos frutos secos que tão bem nos sabem no inverno. Então, guiadas pela Telma, nascida nessa cidade tão abençoada, dirigimo-nos às bancas onde as mulheres de Tomar vendem frutos secos, sonhados, criados, produzidos e preparados com tanto carinho para chegarem até nós nesta feira de santa Iria. Sentimos nelas o cuidado, o esmero, o orgulho de poderem oferecer-nos produtos diferentes e variados, como arandos, peras e maçãs secas, pinhões, flor de hibisco seca e frutos da época, como as romãs. E as vendedoras, muito animadas, até por aquela atmosfera festiva, que elas conhecem de toda a sua vida, e é de facto muito bonita, proporcionaram-nos mais uma bela e significativa experiência.
Sem dúvida que esta festa, única e absolutamente maravilhosa, ganhou o seu lugar no nosso calendário de celebrações da Roda do Ano da Deusa. Como a faremos nos próximos anos só a Deusa sabe, mas pessoalmente prometo-vos que investirei energia e muito entusiasmo numa programação cuidada, significativa e transformadora, de acordo com a proposta da estação. Abençoada me sinto por mais estes véus que se abriram para mim no meu caminho com a Deusa!


Este tema da Deusa Dupla, do culto de Iria e da face anciã da Deusa da Terra do Meio, entretanto, é central no meu livro A Deusa Celta de Portugal: a Rainha do Verão e a Anciã do Inverno Zéfiro, 2021.

©Luiza Frazão

O MISTÉRIO DAS NOVE IRMÃS

  Afirma Kathy Jones, em Priestess of Avalon, Priestess of the Goddess (Sacerdotisa de Avalon, Sacerdotisa da Deusa), que “[Essas Mulheres d...