sábado, 21 de outubro de 2023

A LAVADEIRA DO VAU - uma divindade do Samhain


(The Washer at the Ford
e a Ribeira da Mulher Morta

 Mexilhoeira Grande, concelho de Portimão, Serro do Algarve 

A Ribeira da Mulher Morta vem de Pereiro e desagua no rio Mexilhoeira

 A cultura algarvia é rica em vestígios celtas e em lendas de Mouras Encantadas e Portimão é uma dessas zonas particularmente afortunadas, dentro daquilo que já pude perceber. Nessa área, não longe da foz da Ribeira de Boina, por exemplo, o monumento funerário de Alcalar apresenta grandes semelhanças com New Grange na Irlanda, construído no vale do River Boyne. Pensa-se que Boina e Boyne se relacionam com o teónimo Bovinda, que por sua vez se relaciona com o nome da Grande Deusa celta, Brígida.

Acontece que uma das minhas alunas trouxe-me há dias uma pérola da cultura celta encontrada quando, ao investigar a Gruta da Mulher Morta, no Serro do Algarve, se deparou com a Ribeira da Mulher Morta. Lendas ouvidas sobre o lugar contam que uma mulher aí se afogou quando insistiu em ir lavar num dia tão sagrado quanto a Quinta-feira da Espiga. O som da roupa a ser batida na pedra ainda ecoa certos dias, a certas horas…

Ora, uma assombração feminina que lava a roupa no rio, no vau, subsiste na cultura irlandesa, onde é designada por the Washer at the Ford, que traduzindo dá a Lavadeira do Vau. A roupa que lava está ensanguentada e ela é considerada um avatar da Deusa Banshee da Irlanda, ou Bean Sidhe do País de Gales, e noutras interpretações da Deusa Morrigan.

Esta anunciadora da morte, divindade do Samhain, portanto, também se pode encontrar no folclore da Galiza, onde é justamente referida como a Lavadeira do Vau. Curiosamente, ainda no concelho de Portimão, ao escrever o nome desta figura no motor de busca, fui remetida para a localidade de Ladeira do Vau…

Na minha perspectiva e interpretação, estas figuras, vão para além da cultura celta e parecem ser aparentadas com o fantasma de La Llorona, do México, ou com as personagens de Medeia, da mitologia grega, e de Lilith, da mitologia hebraica. Relacionam-se também, estas entidades, com o  fantasma da Mulher de Branco, presente na nossa cultura e, ao que parece, em variadíssimas outras latitudes deste mundo e dimensão.

O que eu sinto é que Elas nos trazem notícias do Corpo de Dor do Feminino, remetendo-nos para o grande vazio que o impacto devastador da cultura patriarcal criou na alma da mulher...

Fonte da imagem: https://www.scarletgothica.com/view_work.php?work=378

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Senhora das Flores - uma das Faces da Deusa de Beltane

Sabias que uma das invocações da face da Deusa de Beltane é Senhora das Flores?

As flores são, como sabes, os órgãos sexuais das plantas, puras manifestações da beleza e sabedoria divinas e têm um grande poder, magia e capacidade de cura para nos oferecerem. Como nos diz a autora do livro A Magia das Flores, Tess Whitehurst, elas situam-se na fronteira entre o visível e o invisível, mais perto do reino etérico da energia pura e por isso permitem-nos ver o coração da verdade. Se nos sintonizarmos com as suas vibrações únicas, podemos melhorar muito a nossa saúde e vitalidade, poder e sucesso pessoal. Temos a aromaterapia e os florais de Bach, por exemplo, para o atestarem.

Na verdade elas tanto podem servir como terapeutas como como perfeitas e maravilhosas emissárias do poder da Deusa, por isso a Senhora das Flores é tão importante e será honrada na nossa Conferência da Deusa, entre 10 e 12 de Maio de 2024.

Sem dúvida que quanto mais reconhecemos este poder inefável das flores mais paz e harmonia e alma trazemos ao mundo.

Na nossa cultura existe uma rainha que realizou o célebre Milagre das Rosas. Foi Isabel de Aragão, mais conhecida como a Rainha Santa Isabel (1270-1336), mas parece que outras santas e rainhas realizaram o mesmo, inclusive uma sua tia na Hungria.

Seja como for, desta história existe uma parte que não parece ser vista nem interessar: a proibição do Rei, em relação à Rainha, de esta exercer a caridade. Esta foi a real causa do milagre: esconder do Rei, no caso Dinis, as suas acções em prol das pessoas pobres e esfomeadas, já que o que ela transformou em rosas foi o próprio pão que lhes mataria a fome naquele dia… Esta é a parte do milagre que não se conta, mas que deveria causar-nos indignação, é que, mesmo sendo Isabel de Aragão rainha, e por isso mesmo possuidora de riqueza própria, ela não podia fazer o que queria com o seu dinheiro…

As flores têm destas coisas, um lado sombra… Muitas vezes também são conectadas com futilidade, superficialidade, vaidade, ou desempoderamento… Invocando aspectos sombra do feminino que podem levar-nos até à própria história da Deusa celta Blodeuwedd, a Deusa feita de flores… um pouco como Eva foi feita para Adão… Só que Blodeuwedd se libertou ao apaixonar-se pelo eleito do seu coração… Foi entretanto amaldiçoada até as mulheres da Deusa se terem identificado com o seu destino e reconhecido o seu antigo poder quando se transformou numa coruja, ou mocho, qualquer uma delas muito sagrada da Deusa…

Em Portugal, existem templos cristãos à Senhora das Flores em, pelo menos, Travanca e em Oliveira de Azeméis.

 

 Imagens: Milagre das Rosas, pintor André Gonçalves, 1735

Deusa Blodeuwedd

 

domingo, 1 de outubro de 2023

Reguengo do Fetal – impressionantes vestígios do antigo culto da Deusa Mãe Celta

 

Suspeito que a aldeia do Reguengo do Fetal possa ser um dos lugares da Deusa mais interessantes de que tenho alguma notícia no nosso território. Consta que nos finais do século XVI o seu santuário dedicado à Senhora do Fetal rivalizava em importância com o da Senhora da Nazaré, que é uma Virgem Negra, de Leite, antiquíssima, que se suspeita poder ser a própria Astarte fenícia ou mesmo a egípcia Ísis.

Aí, nesta pequena aldeia do Reguengo do Fetal, em pleno Maciço Calcário Estremenho, encontramos fortemente representadas as energias da Manifestação e da Abundância da Deusa no seu aspecto Mãe, mas também, associadas, as da Cura e as da Morte. A festa do Espírito Santo, no início do Verão, com as ofertas de pão, tem lugar todos os anos nesse recinto, e era na minha infância todo um acontecimento.

Possíveis vestígios do culto das Três Matres celtas?


Para o autor Mackenzie Cook, na sua obra sobre a Deusa celta Epona, estes aspectos da cura e da morte estão fortemente associados à face Mãe da Deusa, e é esta mistura de energias que encontramos aqui, o que me leva a crer que a Deusa Mãe, tantas vezes representada na cultura celta no plural, pelas Três Matres, estudadas e referidas pelo mesmo autor e obra, poderiam muito bem ser o que lá está ainda, bem disfarçado nas três Senhoras que aí têm: igreja matriz, a Senhora dos Remédios; Santuário, a Senhora do Fetal, rodeado pelas campas do cemitério, e no mesmo recinto, encontra-se ainda uma pequena ermida, construída sobre um poço ou nascente de água, dedicada à Senhora da Consolação, embora com a denominação de “da Memória”. Só há pouco tempo me apercebi desta Senhora quando alguém me contou que, até aos dias de hoje, se Lhe vai pedir cura em momentos de aflição, pagando-se depois a graça com a oferenda de “uma meia cheia de trigo”.

Ora, é bom lembrar que esta é uma simples freguesia do concelho da Batalha, de menos de 2000 habitantes, segundo o censo de 2021, e não uma importante capital distrital… convenhamos que três Senhoras em tão pequeno espaço é um tanto exagerado, não? A menos que se trate duma tripla manifestação da Mãe, o que para Mackenzie Cook, era a forma do povo celta enfatizar a importância ou ou referir alguma coisa ou entidade particularmente sagrada ou mágica. Quando esta triplicidade era usada em relação à Mãe, as três Deusas e Suas qualidades eram todas idênticas e a triplicidade apenas enfatizava a sua santidade. Em representações icónicas antigas, elas podiam entretanto diferir entre si em aspectos como o penteado, a postura ou os atributos como se cada Uma delas fosse uma entidade distinta, exprimindo diferentes funções maternais. Não sabemos o que acontecia ali no Reguengo do Fetal, mas desconfio que no mínimo uma promissora pista de investigação se abre diante de nós…

Importante referir que no recinto do Santuário da Senhora do Fetal, no chamado Abrigo dos Romeiros, um grande painel de azulejo conta a lenda da Pastorinha a quem a Senhora ali mesmo certa vez apareceu, enchendo-lhe de pão a arca da casa da família paupérrima onde vivia.

Mais adiante ainda, acrescentando à complexidade e riqueza do lugar, numa famosa formação natural, manifestamente um antigo santuário pagão, podemos encontrar uma estalactite com a forma bem definida de nada mais nada menos que a Deusa da Vulva, que sabemos que no nosso território se invocou como Baubau/Baubo, como na Grécia antiga, e no norte da Europa como Sheela Na Gig. Entre outros poderes, esta Deusa está fortemente associada ao parto, acontecimento no qual o grande portal de entrada nesta dimensão, a vulva da mulher, é central. A Ela se ia pedir que nessa hora tão temível esta abrisse facilmente para deixar passar o ser que assim era dado à luz.

Se houver outro lugar com esta colecção de vestígios dum antiquíssimo culto pagão à Deusa no Seu aspecto de Mãe no nosso território, digam por favor, porque não conheço… Mas a verdade também é que a nossa riqueza relativamente ao antigo culto da Deusa é mesmo muito grande…

A Investigação continua. Quando procuro as imagens representando a Senhora dos Remédios da igreja matriz, ou a Senhora da Consolação, sou remetida para a importante - do ponto de vista da arte sacra - imagem dominante da Senhora do Fetal. Como se as outras duas fossem partes ou aspectos desta... Referir ainda que a variedade de vestígios  arqueológicos desta aldeia é notável. 

Vou entretanto ver o que me acrescenta a autora Miranda Green, Celtic Goddesses, uma das principais fontes do trabalho de Mackenzie Cook… Ah, e esqueci de referir que sou suspeita porque esta é a freguesia onde nasci e uma das aldeias mais bonitas que conheço em Portugal!...

A ideia da Mãe como um colectivo comum a outras culturas do mundo

A ideia da Mãe como tripla, as Três Matres celtas, não é algo específico apenas da cultura celta, na verdade, ela encontra paralelo em outras culturas do mundo. Segundo o antropólogo Bronislaw Malinowski, em The Sexual Life of Savages in the Western Melanesias, as mulheres trobriandesas dum determinado clã tinham um nome coletivo, “tábula”, e era a “tábula” que precisamente se ocupava do parto das mulheres do clã. Também segundo Bachofen, antropólogo suíço do século XIX famoso pelas suas teorias sobre as antigas sociedades matriarcais, a Mãe antiga estava inserida num conjunto, era parte dum colectivo, que ele designou pelo termo alemão de Muttertum, e era esta teia que, segundo ele, constituía o habitat natural da Mãe do nosso passado remoto.*

 * Apontamentos recolhidos na obra da investigadora Cacilda Rodrigañez Bustos

Imagem das três Matres: https://brewminate.com/goddesses-in-celtic-religion-the-matres-and-matronae/

 

 

 

Helena dos Caminhos / Senhora dos Verdes

  Yuri Leitch HELENA DOS CAMINHOS   “Se Helena apartar do campo seus olhos nascerão abrolhos” Luís de Camões   “O azar da Pení...