Suspeito que a aldeia do Reguengo do Fetal possa ser um dos
lugares da Deusa mais interessantes de que tenho alguma notícia no nosso
território. Consta que nos finais do século XVI o seu santuário dedicado à
Senhora do Fetal rivalizava em importância com o da Senhora da Nazaré, que é uma
Virgem Negra, de Leite, antiquíssima, que se suspeita poder ser a própria Astarte
fenícia ou mesmo a egípcia Ísis.
Aí, nesta pequena aldeia do Reguengo do Fetal, em pleno Maciço
Calcário Estremenho, encontramos fortemente representadas as energias da Manifestação
e da Abundância da Deusa no seu aspecto Mãe, mas também, associadas, as da Cura
e as da Morte. A festa do Espírito Santo, no início do Verão, com as ofertas de
pão, tem lugar todos os anos nesse recinto, e era na minha infância todo um
acontecimento.
Possíveis vestígios do culto das Três Matres celtas?
Para o autor Mackenzie Cook, na sua obra sobre a Deusa
celta Epona, estes aspectos da cura e da morte estão fortemente associados à face Mãe da Deusa, e é esta mistura de energias que encontramos aqui, o que
me leva a crer que a Deusa Mãe, tantas vezes representada na cultura celta no
plural, pelas Três Matres, estudadas e referidas pelo mesmo autor e obra, poderiam
muito bem ser o que lá está ainda, bem disfarçado nas três Senhoras que aí têm: igreja
matriz, a Senhora dos Remédios; Santuário, a Senhora do Fetal, rodeado pelas
campas do cemitério, e no mesmo recinto, encontra-se ainda uma pequena ermida,
construída sobre um poço ou nascente de água, dedicada à Senhora da Consolação,
embora com a denominação de “da Memória”. Só há pouco tempo me apercebi desta Senhora quando alguém me
contou que, até aos dias de hoje, se Lhe vai pedir cura em momentos de aflição,
pagando-se depois a graça com a oferenda de “uma meia cheia de trigo”.
Ora, é bom lembrar que esta é uma simples freguesia do concelho
da Batalha, de menos de 2000 habitantes, segundo o censo de 2021, e não uma importante capital distrital… convenhamos que três
Senhoras em tão pequeno espaço é um tanto exagerado, não? A menos que se trate
duma tripla manifestação da Mãe, o que para Mackenzie Cook, era a forma do povo celta enfatizar a importância ou ou referir alguma coisa ou entidade particularmente sagrada ou mágica. Quando esta
triplicidade era usada em relação à Mãe, as três Deusas e Suas qualidades eram
todas idênticas e a triplicidade apenas enfatizava a sua santidade. Em
representações icónicas antigas, elas podiam entretanto diferir entre si em aspectos
como o penteado, a postura ou os atributos como se cada Uma delas fosse uma entidade distinta, exprimindo diferentes funções maternais. Não sabemos o que acontecia
ali no Reguengo do Fetal, mas desconfio que no mínimo uma promissora pista de investigação se abre diante de nós…
Importante referir que no recinto do Santuário da Senhora do
Fetal, no chamado Abrigo dos Romeiros, um grande painel de azulejo conta a lenda da
Pastorinha a quem a Senhora ali mesmo certa vez apareceu, enchendo-lhe de pão a
arca da casa da família paupérrima onde vivia.
Mais adiante ainda, acrescentando à complexidade e riqueza do
lugar, numa famosa formação natural, manifestamente um antigo santuário pagão, podemos
encontrar uma estalactite com a forma bem definida de nada mais nada menos que a
Deusa da Vulva, que sabemos que no nosso território se invocou como
Baubau/Baubo, como na Grécia antiga, e no norte da Europa como Sheela Na Gig.
Entre outros poderes, esta Deusa está fortemente associada ao parto,
acontecimento no qual o grande portal de entrada nesta dimensão, a vulva da
mulher, é central. A Ela se ia pedir que nessa hora tão temível esta abrisse
facilmente para deixar passar o ser que assim era dado à luz.
Se houver outro lugar com esta colecção de vestígios dum
antiquíssimo culto pagão à Deusa no Seu aspecto de Mãe no nosso território, digam por favor, porque
não conheço… Mas a verdade também é que a nossa riqueza relativamente ao antigo
culto da Deusa é mesmo muito grande…
A Investigação continua. Quando procuro as imagens representando a Senhora dos Remédios da igreja matriz, ou a Senhora da Consolação, sou remetida para a importante - do ponto de vista da arte sacra - imagem dominante da Senhora do Fetal. Como se as outras duas fossem partes ou aspectos desta... Referir ainda que a variedade de vestígios arqueológicos desta aldeia é notável.
Vou entretanto ver o que me
acrescenta a autora Miranda Green, Celtic Goddesses, uma das principais
fontes do trabalho de Mackenzie Cook… Ah, e esqueci de referir que sou suspeita
porque esta é a freguesia onde nasci e uma das aldeias mais bonitas que conheço em Portugal!...
A ideia da Mãe como um colectivo comum a outras culturas do mundo
A ideia da Mãe como tripla, as Três Matres celtas, não é algo específico apenas da cultura celta, na verdade, ela encontra paralelo em outras culturas do mundo. Segundo o antropólogo Bronislaw Malinowski, em The Sexual Life of Savages in the Western Melanesias, as mulheres trobriandesas dum determinado clã tinham um nome coletivo,
“tábula”, e era a “tábula” que precisamente se ocupava do parto das mulheres do clã. Também segundo Bachofen, antropólogo suíço do século XIX famoso
pelas suas teorias sobre as antigas sociedades matriarcais, a Mãe antiga estava
inserida num conjunto, era parte dum colectivo, que ele designou pelo termo
alemão de Muttertum, e era esta teia que, segundo ele, constituía o habitat natural da
Mãe do nosso passado remoto.*
* Apontamentos recolhidos na obra da investigadora Cacilda Rodrigañez Bustos
Imagem das três Matres: https://brewminate.com/goddesses-in-celtic-religion-the-matres-and-matronae/