A Ilha mágica é como um jardim rodeado de água. No seu centro a árvore e a fonte da vida… Mitos e lendas falam-nos desses jardins frondosos, das suas árvores em flor, dos seus pomares de macieiras. Nas histórias do mundo inteiro, tais paraísos situam-se no Oeste.
The Language of Ma, Annine Van der Meer
Esta piroga milenar facilmente poderia ser concebida como a própria barca de Atégina, Senhora do Rio da Morte, Dissolução, Transformação e Renascimento...
“Entre 2002 e 2003 foram descobertas e recuperadas no rio Lima, nas proximidades do eixo entre Lanheses, na margem norte, e do lugar da Passagem, de Moreira de Geraz do Lima na margem sul, duas pirogas monóxilas* datando entre os séculos 4º e 2º a.C., que
receberam a designação de Lima 4 e 5. Com efeito, desde os anos oitenta já tinham sido
recuperadas neste rio três outras embarcações do mesmo tipo datando da época medieval, duas das quais perto desta mesma área. Estes achados estão claramente relacionados com uma tradição multimilenária desta área de passagem do rio, bem atestada como constando num itinerário dos caminhos da famosa peregrinação medieval de Santiago de Compostela.”(1)
*feitas de um só tronco escavado
“Este rio foi indicado como sendo o mitológico Letes por Estrabão e fabulado profusamente na mitologia greco-romana como o rio do esquecimento, da dissimulação. Também era chamado de Belion.
Mitologia e geografia cruzaram-se num momento histórico, em 138 a.C., durante a conquista romana da Península Ibérica. Quando o general romano Décimo Júnio Bruto Galaico dispõe-se a derrubar o mito, já que o rio impedia a progressão da sua campanha militar na região. Atravessou o Lima só e, da outra margem, chamou os seus soldados, um por um, pelos seus nomes. Os seus soldados, espantados pelo facto do seu general manter a memória, atravessaram então o rio, sem medo, claudicando o mito do Lete. Este evento histórico é recriado em Xinzo, Espanha, numa festa chamada ‘Festa do Esquecimento’.” (2)
“O rio Lima continua a ser cantado pelos poetas, tendo em António Feijó porventura um dos seus maiores bardos”:
Qual seria a palavra correcta para designar esta celebração em língua portuguesa?
"Não existe palavra portuguesa própria para Samhain, mas esta deve ter influenciado a passagem do barbarismo fonético do Lat. septimana para «semana». A palavra Samhain significa fim do verão e deriva de duas palavras "samh", verão, e "fuin", «fim». Samhain < Samh-w-uin <Samh + | fuin < «fim» Lat. fine. Por aqui a palavra deve ter ficado em topónimos como Cinfães (etimologia desconhecida) e Sanfins (> S. Fins), quase todos na região celta duriense e em nomes próprios como Samaiana. A tradição portuguesa tem a festa dos «finados» (> S. Fins), e a quarta-feira de cinzas pode ter sido o nome inicial da festa por deturpação clerical de Cinfães com cinzas como *Sanfuin passou a Sanfins e depois a S. Fins. Como não existe nenhum S. Fins, no séc. XVII passou a S. Pedro Fins. «Cinzas» < *cinisia < Lat. cinis => "fuin", 'fim'."
(Artur Felisberto, blogue Numância)
Pessoalmente, uso a primeira designação da lista, Samhain (pronunciada à portuguesa, claro, evitando o uso duma pronúncia estrangeira, que será sempre uma fraca imitação da original) porque o termo é praticamente comum à religiosidade pagã do Hemisfério Norte, e ao usarmos a mesma designação reforçamos o impacto global destas celebrações e assim a esperança de, com o passar do tempo, nos tornarmos uma denominação religiosa tão impactante como a cristã, budista ou muçulmana, o que é muito auspicioso por se tratar duma espiritualidade centrada na terra.
Mas Magusto, entretanto, parece muito familiar para muitas e muitos de nós, e usar o termo para designar este festival é uma ideia tentadora. Vamos lá então ver mais de perto as possibilidades do vocábulo. Dizem algumas pessoas que vem do latim com significado de "grande fogueira". Já o dicionário Priberam, entretanto, não está tão seguro e indica para Magusto uma “origem duvidosa, talvez do latim ustus, -a, -um, particípio passado de uro, urere, queimar” e acrescenta os vários sentidos que recolheu, devidamente numerados:
"1. Fogueira de assar castanhas; 2. Porção de castanhas assadas nessa fogueira; 3. Merenda de castanhas assadas; 4. Festa, geralmente associada ao dia de S. Martinho ou ao dia de Todos os Santos, em que tradicionalmente se assam e comem castanhas."
Verifico que todos estes sentidos confirmam a minha ideia inicial sobre o significado desta palavra, o facto de se tratar duma celebração, à volta duma fogueira ou dum braseiro, onde se assam castanhas e se prova o vinho novo e a água-pé. Em honra, ou incluindo na festa, as e os antepassados, claro. O mais possível.
Dirão algumas pessoas, entretanto, que isto é agora o sentido actual, mas que o mais arcaico será o da grande fogueira das encruzilhadas, como ainda se faz em alguns lugares do território. Pessoalmente conheço essas grandes fogueiras que passaram das encruzilhadas para os adros das igrejas e capelas (espaços igualmente liminares), como a grande fogueira do Natal (o famoso tronco de Natal), a do Ano Novo, a de Santa Luzia (13 de Dezembro), as dos Santos Populares...
Na verdade, as grandes fogueiras fazem bem mais sentido pelas noites frias, invernosas, mas se pararmos um bocadinho para pensar, é o fogo que preside à celebração de cada um dos oito festivais da Roda do Ano celta. E sabemos bem a razão: a Roda do Ano celta celebra o ciclo da Terra à volta do Sol, e em cada ponto dessa Roda, formada pelos eixos dos Equinócios e dos Solstícios e respectivos pontos intermédios, é a nossa estrela, o Sol, que invocamos, ao alimentarmos o fogo dessas fogueira, o seu grande símbolo ou representante. Na verdade, não há celebração da Roda do Ano sem fogueira, embora os rigores do nosso clima tenham basicamente criminalizado a grande fogueira de Lammas, quando honramos o fogo mantenedor da vida da Deusa no Seu aspecto Mãe. Resta-nos, entretanto, a segurança do fogo do forno onde por esta altura é de rigor cozermos o pão de Lammas, festival das primeiras colheitas, que são basicamente os cereais.
Mas voltando ao Magusto, o termo tem na essência o sentido de festa, de confraternização, com as castanhas, a água-pé, o vinho novo, os bolos das santas e dos santos, e outros petiscos regionais, como iguarias principais desse banquete, no qual as e os Finados são tratadas e tratados com especial deferência.
Para melhor percebermos o sentido desta celebração, sugiro que vejamos o que ainda acontece actualmente no México e que, segundo consta, ao contrário do que poderíamos supor, vem de tempos pré-colombianos. Para cotejarmos com o que acontece, ou acontecia, na nossa realidade cultural, sugiro que espreitemos o que se diz na Wikipédia, com as fontes devidamente assinaladas, na entrada "Pão-por-deus":
“O peditório do pão-por-deus está associado ao antigo costume que se tinha de oferecer pão, bolos vinho e outros alimentos aos defuntos. Era costume "durante o ano, nos domingos e dias festivos se offerecem por devoção picheis, ou frascos de vinho, e certos pães, que põe em uma toalha estendida sobre a sepultura do defunto, e uma vela acesa." Também se colocava pão, vinho e dinheiro no caixão do defunto para a viagem. No canon LXIX do II Concilio de Braga do ano 572 proibia-se que se levassem alimentos à tumba.”https://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A3o-por-Deus
Ora, tudo isto continua a fazer-se no México, penso que sobretudo na região de Oaxaca, de cultura ainda nítida e orgulhosamente matriarcal, ou matrifocal. Existem belos documentários online que mostram a exuberância destas festividades designadas na língua local por Dia de los Muertos.
Mas não podemos esquecer que a celebração do Samhain é na essência a celebração da Morte, do fim do bom tempo, do final das colheitas, do início da rigorosa e temível estação do Inverno, e por isso, a meu ver, o significado do vocábulo Magusto não abrange a totalidade do sentido deste festival. Ele refere apenas o seu aspecto mais festivo, mais lúdico, que também faz sentido, sem dúvida, porque ao mesmo tempo celebramos também a vida que assim se renova.
Ora, se usássemos o termo Magusto para substituir Samhain, poderíamos estar a tentar escapar à parte mais pesada, mais dolorosa, deste festival. Se se trata do festival da Morte, é indispensável que nós, pagãs e pagãos, a honremos e respeitemos e mais à carga de sofrimento que implica, já que a tendência geral é para evitar o tema, para negar a morte, para esconder essa realidade inevitável e necessária para a renovação da vida, bem como o aspecto iniciático do sofrimento. Na verdade parece até existir a ideia de que a morte seria quase que uma vergonhosa derrota face às promessas implícitas no moderno progresso científico e tecnológico, que em última análise quase a deveria impedir…
Falta ver ainda, da proposta inicial do título, o termo Finados, usado pela igreja Católica. O Dia de Finados, ou o Dia dos Mortos. Estes seriam os da minha preferência, não fosse a questão do género. Actualmente não me parece aceitável defender o uso de nenhum termo genérico que anule, que trague, que devore o feminino na língua e a verdade é que fica pesado desdobrar a palavra na versão feminina e masculina…
Agora uma sugestão um tanto ou quanto transgressora: vamos dizer “finades”, recorrendo à pronúncia de eminentes figuras nacionais? Quem se lembra dos discursos de Ramalho Eanes? Talvez este pudesse ser afinal o seu grande contributo para o avanço da cultura portuguesa, quem sabe?...
Enquanto não levamos a ideia por diante, porém, e até para ser fiel à intenção já referida no início, fico-me com Samhain (com "h" por respeito à língua de origem...).
Imagens: 1. Altar de Samhain; 2. Bolos d@s sant@s; 3. Preparação da lenha para atear a grande fogueira do Ano Novo, Torre da Magueixa; 4. Meu altar mexicano (workshop A Mulher de Branco, Conferência da Deusa de Glastonbury 2014); 5. Tradições mexicanas do Dia de los Muertos; 4. Celebrações da Morte, Beira Litoral, actualidade.