quinta-feira, 2 de março de 2023

O MISTÉRIO DAS NOVE IRMÃS

 

Afirma Kathy Jones, em Priestess of Avalon, Priestess of the Goddess (Sacerdotisa de Avalon, Sacerdotisa da Deusa), que “[Essas Mulheres divinas] são o princípio da sabedoria, que se manifesta na forma feminina para benefício de toda a humanidade. Elas são assim as protetoras da sabedoria, que nos acenam através da vibração e do som, ajudando-nos a vencer resistências no nosso caminho espiritual e trazendo-nos experiências da realidade inefável ou da graça divina. Elas ajudam ainda quem está a morrer a atravessar as portas da morte. São conhecidas no Budismo como emanações da mente iluminada, que mantém o propósito de procurar a iluminação não apenas para si própria mas para benefício do todo”.

À semelhança das Nove Morgens de Avalon, e de muitas outras, as Nove Hespérides abarcam todas as qualidades da Deusa, em todos os Seus aspetos, de Donzela e Anciã, de Criadora e Destruidora, de Senhora da Vida e de Senhora da Morte. Símbolos máximos da liberdade feminina, como as Dakinis orientais, inspiradoras guardiãs do conhecimento, como as Nove Musas gregas, elas dominam as sete artes liberais (Lógica, Gramática, Retórica, Aritmética, Música, Geometria, Astronomia/Astrologia). Na história da Deusa, Elas são famosas pela Sua força e talento, pela Sua beleza e sensualidade, pelos Seus dotes para a música, o canto e a dança, pelas Suas capacidades de profecia, pelo domínio das artes da cura e pela possibilidade de se metamorfosearem, de mudarem de forma, e de influírem nas condições do tempo atmosférico, proezas de que podemos encontrar eco nas nossas histórias antigas.

Esta instituição de nove mulheres, de nove sacerdotisas principais, poderá ter sido a antecessora dos conventos e dos mosteiros de religiosas e de religiosos. Viviam de preferência em lugares altaneiros, em montes sagrados, como as várias capelas dedicadas a cada uma delas, existentes ainda hoje em dia, nos dão testemunho, tal como várias lendas envolvendo certos montes e serranias. À volta destas mulheres de saber, fundaram-se vilas e cidades. Elas foram criadoras de civilização, dispensadoras do conhecimento disponível, da ciência, das artes e dos ofícios, de cura e profecia, servindo a Deusa no Seu Templo, vistas e sentidas muitas delas como a própria incorporação da Deusa na sua forma humana, tal como algumas famosas Dakinis, as Bailarinas do Céu do Tantra tibetano, ficaram conhecidas, por terem vivido como mulheres com existência historicamente comprovada. Esta é uma ponta do véu que já podemos começar a levantar, sem medo de exagero, para reescrevemos a História no feminino, até porque as visões de várias pessoas, cuja obra tenho lido ou que tenho ouvido pessoalmente, convergem todas no mesmo sentido. 

Um capítulo importante desta mesma História, que não podemos ignorar, é a forma violenta e atroz como o patriarcado emergente pôs fim ao poder e à independência destas mulheres e ao tipo de sociedade que ajudaram a criar, dando lugar a um outro completamente oposto, onde a rapina, a destruição e a conquista se tornaram norma, e onde a guerra e os seus perpetradores foram glorificados e cultuados como heróis. A contraparte dessa glorificação dos heróis masculinos foi a martirização das sacerdotisas da Deusa, sacrificadas numa luta desigual entre um sistema que chegava ao fim e um outro que começava, e a sua elevação à condição de Santas, que para mim é a melhor prova de que se tratava de mulheres de grande poder espiritual nas comunidades que serviam. Diz-nos a lenda que Elas foram mortas na defesa da Sua virgindade, ou seja, da sua liberdade de disporem do Seu corpo, da Sua sexualidade e da Sua vida como bem Lhes aprouvesse, recusando ser colocadas ao serviço do programa patriarcal. Em Os Mitos Gregos, Robert Graves fala-nos dum grupo de sacerdotisas da Deusa Atena que preferiram o suicídio à desonra de pertencer a um único homem. Também o caso histórico de Hipácia de Alexandria, que recentemente o cinema tornou conhecido do grande público, é um exemplo elucidativo daquilo que aconteceu a inúmeras mulheres de grande valor, mortas, ou simplesmente silenciadas. Progressivamente, as suas descendentes foram afastadas das fontes de conhecimento académico, subalternizadas, reduzidas à condição de tecnologia de reprodução da espécie, de serviçais, ou de escravas, completamente esquecidas dos tempos áureos em que criaram com a sua visão e sabedoria sociedades justas, igualitárias e prósperas, segundo um modelo que consensualmente se admite que foi aquele seguido por antigas culturas como a de Creta ou a de Çatal Hüyük, na Turquia.

MUSAS DA PROFECIA

Muitas destas Sacerdotisas da Deusa de outros tempos, de acordo com as lendas tecidas à sua volta, ou como referem as narrativas hagiográficas escritas por homens da igreja, terão sido decapitadas. Na verdade, a forma como, no decorrer do seu martírio, as cabeças destas mulheres são sistematicamente cortadas poderá ser uma importante pista para a revelação da real identidade e poder de que usufruíam. Depois de ler a exposição de Gabriela Morais relativa ao culto céltico das cabeças, ouso postular que as cabeças destas mulheres seriam consideradas membros preciosos de poderosas entidades, que, entretanto, terão entrado em declínio com a mudança do paradigma matrifocal para o patriarcal e consequente erradicação do culto da Deusa. Com efeito, diz-nos a autora de O Culto das Cabeças: “Ao que tudo indica, para os Celtas, a cabeça terá sido o lugar onde residia a alma, a pura essência da personalidade humana que, na sua iconografia, chegou a representar os deuses. Nesta medida, a cabeça possuiria atributos divinos e, na sua direta relação com as crenças religiosas célticas, para além de ser incorruptível e autónoma do corpo, teria poderes protetores – das pessoas ou coletividades, do gado ou da vegetação, fontes da sobrevivência –, divinatórios ou proféticos, de cura e de regeneração, poderes, em suma, xamânicos. Como tal, vamos encontrá-la, ainda hoje, inserida simbolicamente dentro das correntes de esoterismo. Assim sendo, poderemos olhá-la como representante do espírito, da criatividade divina expressa através do humano, que tomaria corpo na poesia, forma e suporte de toda a sabedoria, em consonância com o papel que o conhecimento intuitivo desempenha na psique humana, segundo o afirmam as ciências cognitivas. Nesta ordem de ideias, podemos compreender a função fundamental, mais tardia, junto de reis e príncipes, dos bardos, membros da mais alta classe sacerdotal céltica, os druidas, conhecedores dos segredos da Terra, do passado, presente e futuro.”

Ouso postular que a obsessão com decapitar o corpo destas sacerdotisas, profetizas, mulheres divinas, representantes ou incorporações da própria Deusa, poderia estar relacionada com os superiores atributos que os seus algozes lhes reconheceriam, em particular porventura o dom da profecia, de que tentariam assenhorear-se através da posse das Suas cabeças, lugares onde se acreditava que a própria alma residia.

in A Deusa do Jardim das Hespérides, Luiza Frazão, Zéfiro

Imagens:

1. Gruta del Cogul, Catalunha

2. Sintra, Santa Eufémia

3. Uma das capelas em sua honra, Senhora da Abadia, Gerês

4. Monte de Santa Quitéria, Felgueiras

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