sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Samhain, Magusto, Finados...?

 

Qual seria a palavra correcta para designar esta celebração em língua portuguesa?


"Não existe palavra portuguesa própria para Samhain, mas esta deve ter influenciado a passagem do barbarismo fonético do Lat. septimana para «semana». A palavra Samhain significa fim do verão e deriva de duas palavras "samh", verão, e "fuin", «fim». Samhain < Samh-w-uin <Samh + | fuin < «fim» Lat. fine. Por aqui a palavra deve ter ficado em topónimos como Cinfães (etimologia desconhecida) e Sanfins (> S. Fins), quase todos na região celta duriense e em nomes próprios como Samaiana. A tradição portuguesa tem a festa dos «finados» (> S. Fins), e a quarta-feira de cinzas pode ter sido o nome inicial da festa por deturpação clerical de Cinfães com cinzas como *Sanfuin passou a Sanfins e depois a S. Fins. Como não existe nenhum S. Fins, no séc. XVII passou a S. Pedro Fins. «Cinzas» < *cinisia < Lat. cinis => "fuin", 'fim'."
(Artur Felisberto, blogue Numância)

Pessoalmente, uso a primeira designação da lista, Samhain (pronunciada à portuguesa, claro, evitando o uso duma pronúncia estrangeira, que será sempre uma fraca imitação da original) porque o termo é praticamente comum à religiosidade pagã do Hemisfério Norte, e ao usarmos a mesma designação reforçamos o impacto global destas celebrações e assim a esperança de, com o passar do tempo, nos tornarmos uma denominação religiosa tão impactante como a cristã, budista ou muçulmana, o que é muito auspicioso por se tratar duma espiritualidade centrada na terra.

Mas Magusto, entretanto, parece muito familiar para muitas e muitos de nós, e usar o termo para designar este festival é uma ideia tentadora. Vamos lá então ver mais de perto as possibilidades do vocábulo. Dizem algumas pessoas que vem do latim com significado de "grande fogueira". Já o dicionário Priberam, entretanto, não está tão seguro e indica para Magusto uma “origem duvidosa, talvez do latim ustus, -a, -um, particípio passado de uro, urere, queimar” e acrescenta os vários sentidos que recolheu, devidamente numerados:
"1. Fogueira de assar castanhas; 2. Porção de castanhas assadas nessa fogueira; 3. Merenda de castanhas assadas; 4. Festa, geralmente associada ao dia de S. Martinho ou ao dia de Todos os Santos, em que tradicionalmente se assam e comem castanhas."
Verifico que todos estes sentidos confirmam a minha ideia inicial sobre o significado desta palavra, o facto de se tratar duma celebração, à volta duma fogueira ou dum braseiro, onde se assam castanhas e se prova o vinho novo e a água-pé. Em honra, ou incluindo na festa, as e os antepassados, claro. O mais possível.
Dirão algumas pessoas, entretanto, que isto é agora o sentido actual, mas que o mais arcaico será o da grande fogueira das encruzilhadas, como ainda se faz em alguns lugares do território. Pessoalmente conheço essas grandes fogueiras que passaram das encruzilhadas para os adros das igrejas e capelas (espaços igualmente liminares), como a grande fogueira do Natal (o famoso tronco de Natal), a do Ano Novo, a de Santa Luzia (13 de Dezembro), as dos Santos Populares...


Na verdade, as grandes fogueiras fazem bem mais sentido pelas noites frias, invernosas, mas se pararmos um bocadinho para pensar, é o fogo que preside à celebração de cada um dos oito festivais da Roda do Ano celta. E sabemos bem a razão: a Roda do Ano celta celebra o ciclo da Terra à volta do Sol, e em cada ponto dessa Roda, formada pelos eixos dos Equinócios e dos Solstícios e respectivos pontos intermédios, é a nossa estrela, o Sol, que invocamos, ao alimentarmos o fogo dessas fogueira, o seu grande símbolo ou representante. Na verdade, não há celebração da Roda do Ano sem fogueira, embora os rigores do nosso clima tenham basicamente criminalizado a grande fogueira de Lammas, quando honramos o fogo mantenedor da vida da Deusa no Seu aspecto Mãe. Resta-nos, entretanto, a segurança do fogo do forno onde por esta altura é de rigor cozermos o pão de Lammas, festival das primeiras colheitas, que são basicamente os cereais.

Mas voltando ao Magusto, o termo tem na essência o sentido de festa, de confraternização, com as castanhas, a água-pé, o vinho novo, os bolos das santas e dos santos, e outros petiscos regionais, como iguarias principais desse banquete, no qual as e os Finados são tratadas e tratados com especial deferência.

Para melhor percebermos o sentido desta celebração, sugiro que vejamos o que ainda acontece actualmente no México e que, segundo consta, ao contrário do que poderíamos supor, vem de tempos pré-colombianos. Para cotejarmos com o que acontece, ou acontecia, na nossa realidade cultural, sugiro que espreitemos o que se diz na Wikipédia, com as fontes devidamente assinaladas, na entrada "Pão-por-deus":

“O peditório do pão-por-deus está associado ao antigo costume que se tinha de oferecer pão, bolos vinho e outros alimentos aos defuntos. Era costume "durante o ano, nos domingos e dias festivos se offerecem por devoção picheis, ou frascos de vinho, e certos pães, que põe em uma toalha estendida sobre a sepultura do defunto, e uma vela acesa." Também se colocava pão, vinho e dinheiro no caixão do defunto para a viagem. No canon LXIX do II Concilio de Braga do ano 572 proibia-se que se levassem alimentos à tumba.” https://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A3o-por-Deus


Ora, tudo isto continua a fazer-se no México, penso que sobretudo na região de Oaxaca, de cultura ainda nítida e orgulhosamente matriarcal, ou matrifocal. Existem belos documentários online que mostram a exuberância destas festividades designadas na língua local por Dia de los Muertos.

Mas não podemos esquecer que a celebração do Samhain é na essência a celebração da Morte, do fim do bom tempo, do final das colheitas, do início da rigorosa e temível estação do Inverno, e por isso, a meu ver, o significado do vocábulo Magusto não abrange a totalidade do sentido deste festival. Ele refere apenas o seu aspecto mais festivo, mais lúdico, que também faz sentido, sem dúvida, porque ao mesmo tempo celebramos também a vida que assim se renova.

Ora, se usássemos o termo Magusto para substituir Samhain, poderíamos estar a tentar escapar à parte mais pesada, mais dolorosa, deste festival. Se se trata do festival da Morte, é indispensável que nós, pagãs e pagãos, a honremos e respeitemos e mais à carga de sofrimento que implica, já que a tendência geral é para evitar o tema, para negar a morte, para esconder essa realidade inevitável e necessária para a renovação da vida, bem como o aspecto iniciático do sofrimento. Na verdade parece até existir a ideia de que a morte seria quase que uma vergonhosa derrota face às promessas implícitas no moderno progresso científico e tecnológico, que em última análise quase a deveria impedir…


Falta ver ainda, da proposta inicial do título, o termo Finados, usado pela igreja Católica. O Dia de Finados, ou o Dia dos Mortos. Estes seriam os da minha preferência, não fosse a questão do género. Actualmente não me parece aceitável defender o uso de nenhum termo genérico que anule, que trague, que devore o feminino na língua e a verdade é que fica pesado desdobrar a palavra na versão feminina e masculina…

Agora uma sugestão um tanto ou quanto transgressora: vamos dizer “finades”, recorrendo à pronúncia de eminentes figuras nacionais? Quem se lembra dos discursos de Ramalho Eanes? Talvez este pudesse ser afinal o seu grande contributo para o avanço da cultura portuguesa, quem sabe?...

Enquanto não levamos a ideia por diante, porém, e até para ser fiel à intenção já referida no início, fico-me com Samhain (com "h" por respeito à língua de origem...).

©Luiza Frazão

Imagens: 1. Altar de Samhain; 2. Bolos d@s sant@s; 3. Preparação da lenha para atear a grande fogueira do Ano Novo, Torre da Magueixa; 4. Meu altar mexicano (workshop A Mulher de Branco, Conferência da Deusa de Glastonbury 2014); 5. Tradições mexicanas do Dia de los Muertos; 4. Celebrações da Morte, Beira Litoral, actualidade.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Helena dos Caminhos / Senhora dos Verdes

  Yuri Leitch HELENA DOS CAMINHOS   “Se Helena apartar do campo seus olhos nascerão abrolhos” Luís de Camões   “O azar da Pení...