sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Oferendas aos Seres Míticos e o Pacto Ancestral com a Terra

por Jason Hine

(tradução e adaptação em português)

 O pão, o leite e o pacto esquecido

Muitas pessoas ainda hoje oferecem pão e leite aos duendes e fadas.
Mas afinal — qual é o propósito verdadeiro dessa antiga prática?
Quem fez, em primeiro lugar, esse pacto com o povo das colinas?
E como podemos, em tempos de crise ecológica, alimentar o que nos alimenta — com a intenção de compostar o Antropoceno?

“É fácil deixar um pouco de leite para as fadas,
mas difícil oferecer algo que verdadeiramente regenere o mundo.”

As oferendas como elos de memória

Algumas tradições dizem que certas fadas são ancestrais trans-humanizados — espíritos de antigas linhagens humanas.
Se isso é verdade, por que se interessariam por alimentos que os caçadores-coletores nem podiam digerir?

A resposta pode estar nas memórias.
As oferendas não servem apenas como alimento simbólico, mas como elos de lembrança — fios vivos que reconectam os humanos à vasta rede de inteligências da Terra e ao motor vital das bio-regiões.

“O que realmente se oferece não é a substância,
mas as origens lembradas
a história viva e cantada que refaz a teia do mundo.”

Conhecer as origens é o verdadeiro ritual

O valor da oferenda está em conhecer a sua proveniência:
Quem cultivou o grão?
De onde veio o leite?
Que emoções acompanharam quem colheu, amassou e preparou?
Quando essa história é esquecida, ocorre perda de alma e desligamento do corpo da Terra.

“A história lembrada é a oferenda.”

Ao relembrar os elos físicos com a bio-região, refazemos o mundo.
Voltamos a fazer parte da comunidade mais-que-humana — composta de plantas, rios, ventos, pedras, animais e espíritos do lugar.

Oferenda x Sacrifício

As culturas de sacrifício surgem quando a memória se rompe.
São tentativas desesperadas de reparar o esquecimento.
Sacrifícios aparecem quando as coisas já deram errado.

Durante a Idade do Bronze, povos isolados em terras devastadas por desmatamento e erosão tentaram, através de sacrifícios, restaurar a abundância — mas geralmente tarde demais.
Grande parte do “paganismo” posterior foi, talvez, uma tentativa de corrigir o antigo erro ecológico.

Com o Cristianismo, surgiu o “sacrifício final” — o meta-sacrifício que encerraria todos os outros.
Mas ao substituir o ritual físico e ecológico por um sacrifício simbólico e interno, o Cristianismo rompeu os últimos fios de ligação com as tradições de abundância da Terra.
Essa ruptura abriu caminho tanto para as culturas industriais quanto para o racionalismo cartesiano.

 

De que as divindades realmente se alimentam

Hoje, muitas oferendas são apenas gestos vazios — sacrifícios disfarçados.
Mas os seres míticos não se alimentam da matéria, e sim da história, do amor e da memória contidos no gesto.

Elas e eles alimentam-se:

  • do cordão de conchas feito à mão,
  • do leite de um animal cuidado com ternura,
  • da canção de louvor composta no coração,
  • do pão assado com conhecimento da sua origem.

“Os deuses alimentam-se da proveniência —
o fio vivo da memória ancestral
que se estende antes da última era do gelo.”

Ao oferecer algo feito à mão e de origem conhecida, nossas mãos se unem às mãos de milhares de gerações anteriores.
Deixamos de ser “apenas eu” e nos tornamos uma extensão da vontade maior da Terra, um coro de carvalhos, montanhas, corvos, salmões e flores.

Oferecer é relembrar

Pergunta-te:
De onde veio este pão?
Quem cultivou o centeio?
Como esta abóbora viajou da América do Sul até à tua mesa?
Como o trigo saiu do vale do Eufrates e chegou à tua terra?

Essas são as canções que alimentam as divindades.
Canta as histórias das plantas, das mãos que as plantaram, das tradições que as sustentam.
É disso que as divindades se alimentam.

Regenerar a Terra: a maior oferenda

Hoje, não é possível falar em magia, bruxaria, paganismo ou espiritualidade ecológica sem regeneração real da Terra.
O fio dourado da memória ancestral não pode ser refeito enquanto o solo estiver esquecido.

Por isso, a maior oferenda que podemos fazer é:
🌳 reflorestar,
💧 restaurar rios e nascentes,
🌻 plantar ervas e árvores,
🏡 cuidar de pequenos pedaços de terra,
🌆 criar redes e comunidades regenerativas, mesmo nas cidades.

“A regeneração da Terra é a oferenda mais bela e urgente.”

Quando unida a canções, danças e objetos de origem conhecida, essa prática torna-se um presente sagrado aos seres míticos — e ao planeta que nos sustenta.

🌍 Refazendo o pacto

Há milhares de anos, quando deixamos de caçar e passamos a cultivar, fizemos um pacto com os seres da Terra.
As oferendas às fadas são ecos distantes desse pacto.

Mas quando rompemos essa relação — com a industrialização e o esquecimento da alma — o pacto foi quebrado.
Agora, é hora de negociar um novo acordo.

Hoje, não basta oferecer leite, incenso ou whisky.
Precisamos de restaurar a Terra até ao ponto ecológico do último pacto —
antes da devastação e da perda da memória.

Isso requer a criação de ecocívios (cidadãs e cidadãos conscientes), vilas-florestas, economias regenerativas e bio-regiões restauradas.
Mesmo o cuidado com um pequeno jardim urbano já é um começo — uma oferenda viva.

Conclusão: o novo pacto com a Terra

Através da regeneração do solo, da restauração da água e das oferendas de origem conhecida, começamos o “retecimento” da nossa relação com todos os seres
plantas, animais, rios, montanhas e espíritos.

E assim, um novo pacto é feito com os seres mais-que-humanos da Terra.
Um pacto de memória, gratidão e regeneração.

“Ao relembrar, retecemos.
Ao regenerar, reencantamos.
E ao oferecer com consciência,
alimentamos novamente o corpo da Terra.”

Jason Hine

(Escritor, ecologista, contador de histórias e facilitador de rituais; um dos principais nomes ligados ao movimento de ecologia animista e mitopoética no Reino Unido;

Ex-professor e cofundador da Feral College, uma escola alternativa dedicada a estudos de ecologia mítica, rewilding espiritual e práticas de reconexão com a terra;

Autor de vários ensaios que circulam em blogs, redes sociais (como Facebook) e em coletâneas independentes de ecologia e espiritualidade.

O tema central dele é o “reenraizamento ecológico e espiritual” através das “ofertas de origem lembrada” (remembered origins offerings), que liga práticas pagãs antigas à regeneração ecológica contemporânea — um conceito que ele chama de “composting the Anthropocene” (compostar o Antropoceno).

 

 



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