por Jason Hine
(tradução e adaptação em português)
O pão, o
leite e o pacto esquecido
Muitas pessoas ainda hoje oferecem pão e leite
aos duendes e fadas.
Mas afinal — qual é o propósito verdadeiro dessa antiga prática?
Quem fez, em primeiro lugar, esse pacto com o povo das colinas?
E como podemos, em tempos de crise ecológica, alimentar o que nos alimenta
— com a intenção de compostar o Antropoceno?
“É fácil deixar um pouco de leite para as fadas,
mas difícil oferecer algo que verdadeiramente regenere o mundo.”
As oferendas
como elos de memória
Algumas tradições dizem que certas fadas são ancestrais
trans-humanizados — espíritos de antigas linhagens humanas.
Se isso é verdade, por que se interessariam por alimentos que os
caçadores-coletores nem podiam digerir?
A resposta pode estar nas memórias.
As oferendas não servem apenas como alimento simbólico, mas como elos de
lembrança — fios vivos que reconectam os humanos à vasta rede de
inteligências da Terra e ao motor vital das bio-regiões.
“O que realmente se oferece não é a substância,
mas as origens lembradas —
a história viva e cantada que refaz a teia do mundo.”
O valor da oferenda está em conhecer a sua
proveniência:
Quem cultivou o grão?
De onde veio o leite?
Que emoções acompanharam quem colheu, amassou e preparou?
Quando essa história é esquecida, ocorre perda de alma e desligamento
do corpo da Terra.
“A história lembrada é a oferenda.”
Ao relembrar os elos físicos com a bio-região,
refazemos o mundo.
Voltamos a fazer parte da comunidade mais-que-humana — composta de
plantas, rios, ventos, pedras, animais e espíritos do lugar.
Oferenda x
Sacrifício
As culturas de sacrifício surgem quando a
memória se rompe.
São tentativas desesperadas de reparar o esquecimento.
Sacrifícios aparecem quando as coisas já deram errado.
Durante a Idade do Bronze, povos isolados em
terras devastadas por desmatamento e erosão tentaram, através de sacrifícios, restaurar
a abundância — mas geralmente tarde demais.
Grande parte do “paganismo” posterior foi, talvez, uma tentativa de corrigir
o antigo erro ecológico.
Com o Cristianismo, surgiu o “sacrifício
final” — o meta-sacrifício que encerraria todos os outros.
Mas ao substituir o ritual físico e ecológico por um sacrifício simbólico e
interno, o Cristianismo rompeu os últimos fios de ligação com as tradições
de abundância da Terra.
Essa ruptura abriu caminho tanto para as culturas industriais quanto
para o racionalismo cartesiano.
De que as divindades realmente se alimentam
Hoje, muitas oferendas são apenas gestos vazios —
sacrifícios disfarçados.
Mas os seres míticos não se alimentam da matéria, e sim da história,
do amor e da memória contidos no gesto.
Elas e eles alimentam-se:
- do cordão de conchas feito à mão,
- do leite de um animal cuidado com ternura,
- da canção de louvor composta no coração,
- do pão assado com conhecimento da sua origem.
“Os deuses alimentam-se da proveniência —
o fio vivo da memória ancestral
que se estende antes da última era do gelo.”
Ao oferecer algo feito à mão e de origem
conhecida, nossas mãos se unem às mãos de milhares de gerações anteriores.
Deixamos de ser “apenas eu” e nos tornamos uma extensão da vontade maior da
Terra, um coro de carvalhos, montanhas, corvos, salmões e flores.
Oferecer é
relembrar
Pergunta-te:
De onde veio este pão?
Quem cultivou o centeio?
Como esta abóbora viajou da América do Sul até à tua mesa?
Como o trigo saiu do vale do Eufrates e chegou à tua terra?
Essas são as canções que alimentam as divindades.
Canta as histórias das plantas, das mãos que as plantaram, das tradições que as
sustentam.
É disso que as divindades se alimentam.
Regenerar a Terra: a maior oferenda
Hoje, não é possível falar em magia, bruxaria,
paganismo ou espiritualidade ecológica sem regeneração real da Terra.
O fio dourado da memória ancestral não pode ser refeito enquanto o
solo estiver esquecido.
Por isso, a maior oferenda que podemos fazer é:
🌳 reflorestar,
💧 restaurar rios e nascentes,
🌻 plantar ervas e árvores,
🏡 cuidar de pequenos pedaços de terra,
🌆 criar redes e comunidades regenerativas, mesmo nas cidades.
“A regeneração da Terra é a oferenda mais bela e
urgente.”
Quando unida a canções, danças e objetos de origem
conhecida, essa prática torna-se um presente sagrado aos seres míticos
— e ao planeta que nos sustenta.
🌍 Refazendo o
pacto
Há milhares de anos, quando deixamos de caçar e
passamos a cultivar, fizemos um pacto com os seres da Terra.
As oferendas às fadas são ecos distantes desse pacto.
Mas quando rompemos essa relação — com a
industrialização e o esquecimento da alma — o pacto foi quebrado.
Agora, é hora de negociar um novo acordo.
Hoje, não basta oferecer leite, incenso ou
whisky.
Precisamos de restaurar a Terra até ao ponto ecológico do último pacto —
antes da devastação e da perda da memória.
Isso requer a criação de ecocívios (cidadãs
e cidadãos conscientes), vilas-florestas, economias regenerativas
e bio-regiões restauradas.
Mesmo o cuidado com um pequeno jardim urbano já é um começo — uma
oferenda viva.
Conclusão: o novo pacto com a Terra
Através da regeneração do solo, da restauração
da água e das oferendas de origem conhecida, começamos o “retecimento”
da nossa relação com todos os seres —
plantas, animais, rios, montanhas e espíritos.
E assim, um novo pacto é feito com os seres
mais-que-humanos da Terra.
Um pacto de memória, gratidão e regeneração.
“Ao relembrar, retecemos.
Ao regenerar, reencantamos.
E ao oferecer com consciência,
alimentamos novamente o corpo da Terra.”
Jason Hine
(Escritor, ecologista, contador de histórias e
facilitador de rituais; um dos principais nomes ligados ao movimento de ecologia
animista e mitopoética no Reino Unido;
Ex-professor e cofundador da Feral College, uma
escola alternativa dedicada a estudos de ecologia mítica, rewilding espiritual
e práticas de reconexão com a terra;
Autor de vários ensaios que circulam em blogs,
redes sociais (como Facebook) e em coletâneas independentes de ecologia e
espiritualidade.
O tema central dele é o “reenraizamento ecológico
e espiritual” através das “ofertas de origem lembrada” (remembered origins
offerings), que liga práticas pagãs antigas à regeneração ecológica
contemporânea — um conceito que ele chama de “composting the Anthropocene”
(compostar o Antropoceno).





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