domingo, 18 de outubro de 2020

OUTUBRO: ACOLHENDO A ANCIÃ DO INVERNO ( a Deusa do Centro da nossa Roda do Ano é uma entidade dupla)

 

A Deusa na Sua Face de Rainha do Verão despede-se de nós a 13 de Outubro, na Cova da Iria, e uma semana depois Ela é “morta” em Tomar, de onde o Seu corpo, levado pelas águas daquele que é agora também um Rio da Morte e Esquecimento, o Nabão, vai dar ao Zêzere e depois ao Tejo. O Rio do Verão é o Rio da Vida, da fertilidade dos campos, da alegria de chapinhar nas águas que refrescam do calor excessivo do Verão. No Inverno, porém, ele transforma-se no Rio da Morte, que leva o que já pereceu, que destrói, dissolvendo, os destroços da vida. Ele pode também ser o Rio da Morte pelos excessos da sua corrente, pelo transbordar do seu caudal. Mas vendo bem, tal como no Yin temos a marca do Yang e vice-versa, mesmo transbordando, alagando, destruindo a velha forma, ele sempre traz consigo mais e mais fertilidade aos campos. 

E é aí, nesse transbordar das águas do Inverno, que a Deusa vela e protege, conforme testemunha o Seu padrão na Ribeira de Santarém, no santuário erigida a Iria, um lugar onde, sabe-se lá desde quando, o culto desta Deusa se mantém. Aí se Lhe pede protecção e cura, se lhe oferece flores e círios e por vezes se reforça o

pedido com uma imagem do médico santo doutor Sousa Martins, que viveu não longe dali. Iria é agora Rainha do Inframundo, como Perséfone ou Proserpina; Ela jaz e ao mesmo tempo exerce o Seu poder a partir das profundezas do leito do Tejo, desde a Sua “última morada”, o Seu túmulo do mais puro alabastro fabricado pelos próprios anjos, um túmulo nunca visto por olhos humanos a não ser pelos do nosso rei poeta e agricultor, Dinis, e da sua mulher, rainha e santa, Isabel de Aragão, que na nossa cultura têm quase o mítico estatuto do céltico par real Artur e Genivera.

A morte associada ao rio, o Rio da Morte…

A teologia, ou tealogia, da nossa Deusa é rica e complexa e envolve o Sol e a Lua, a Terra e as Águas, para o fundo das quais Ela é levada pela corrente, na estação em que morre a vegetação, os animais hibernam e os campos entram em pousio.

Iria sempre inspirou, além do povo simples, poetas como, aqui, António Nobre:


Santa Iria

(Que floresceu em Nabância no século VII)

 

Num rio virginal de águas claras e mansas,

Pequenino baixel, a Santa vai boiando.

Pouco a pouco, dilui-se o oiro das suas tranças

E, diluído, vê-se as águas aloirando.

 

Circunda-a um esplendor de verdes Esperanças.

Unge-lhe a fronte o luar (os Santos Óleos) brando,

E, com a Graça etérea e meiga das crianças,

Formosa Iria vai boiando, vai boiando…

 

Os cravos e os jasmins abrem-se à luz da Lua,

E, ao verem-na passar, fantástica barquinha,

Murmuram-se entre si: «É um mármore que flutua!»

 

Ela entra, enfim, no Oceano… E escuta-se, ao luar,

A mãe do Pescador, rezando a ladainha

Pelos que andam, Senhor! Sobre as águas do Mar…”

 Leça, 1885, António Nobre

 

À superfície reina agora a Sua contraparte anciã, a Senhora da Pedra, cuja cabeça, a parte mais importante do corpo, onde se aloja a sabedoria e a própria alma, para as nossas antepassadas e os nossos antepassados, vela por nós e pela terra. A Senhora do Inverno, da Pedra, dos Ossos, das Neves, com as Suas Nove Sacerdotisas. Nós te honramos e invocamos o Teu rigor, a tua resiliência, a Tua foice que limpa a terra física, bem como o território da nossa alma, daquilo que já pereceu depois de ter cumprido o seu propósito e tempo de vida. Aí na serra, à Sua cabeça somam-se as outras partes mais significativas do Seu corpo de Grande Criadora. Precisamos da nossa visão desperta e alerta para ver o 

Seu ventre prenhe e os Seus seios fartos, e mais além ainda, anunciada pela marca do seu pezinho de Donzela, a Sua sagrada vulva de onde jorram as águas amnióticas que alimentam e sustêm a Vida.


Lugar tão sagrado no centro do nosso território! Não muito longe dali, está a Sua zoofania do Touro… mas sobre essa pedra que foi entretanto demonizada e transformada nos “chifres do diabo”, falarei apenas depois de a ter pessoalmente visitado. Só sei que em Tomar, lá no lugar de Iria, junto do rio, outro Touro que só pode ser muito sagrado existe também…

 Em Tomar, a 20 de Outubro, quando se realiza a Sua feira dos frutos de Outono, lançamos pétalas de rosas vermelhas no Nabão, oferecidas a Iria, para que o sangue da vida acompanhe a Deusa e A traga de volta no momento certo do Seu regresso em Maio. Abençoada!

 Imagens: 

1. Cabeça da Velha, Serra da Estrela

2. Padrão de Santa Iria, Ribeira de Santarém

3. Pego de Santa Iria, Tomar

4. Cabeça da Velha, Serra da Estrela

5. Rio Nabão em Tomar

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